terça-feira, 15 de novembro de 2016

DAVID REDWINE: SAMPSON ESTAVA ERRADO? - PARTE 1

John Albertson Sampson com seu cão e seu carro. Sampson não constituiu família.  Ao morrer, doou sua fortuna para a Universidade de Albany, onde fez a sua carreira acadêmica.

Mais uma vez o médico e cientista americano doutor David Redwine aborda de uma maneira clara os pontos principais que fazem a teoria de Sampson ser fadada ao fracasso. Por conta do tamanho dividi o texto em duas partes para que haja maior compreensão. Nesta primeira parte ele enumera as falhas que tornam esta teoria descrita em 1921 impossível de ser verdadeira. Mas porque ela ainda é aceita pela maioria dos médicos? Porque os alunos aprendem com seus professores que aprenderam com seus professores e tanto um quanto o outro (no caso os alunos) aceitam o antigo que não tem comprovação científica porque não querem abrir a mente para o novo, que nem é tão novo assim? Aliás, a teoria proposta por Redwine como sendo a possível causa da endometriose, a da metaplasia celômica, é dois anos mais velha que a teoria mais aceita pela maioria dos especialistas. Falaremos sobre isso nas partes finais do texto. A meu ver falta questionamento dos alunos, falta pesquisa para saber o que tem de comprovação científica na área, falta interesse mesmo de tentar fazer diferente. Beijo carinhoso! Caroline Salazar

Por doutor David Redwine
Tradução: doutor Alysson Zanatta
Edição: Caroline Salazar

Sampson estava errado?

Endometriose é definida como a presença de um tecido que se assemelha, de alguma forma, ao endométrio que reveste o interior do útero. Ela acomete cerca de 10% da população feminina em seus anos reprodutivos, e pode causar dor menstrual ou não menstrual, assim como infertilidade. A teoria mais aceita para explicar a sua origem é a teoria da menstruação retrógrada de Sampson [1]. Na versão final de sua teoria, Sampson [1] propôs que a endometriose ocorre como resultado de sangue menstrual refluído através das trompas uterinas, este sangue carregando consigo células endometriais viáveis que poderiam se aderir às superfícies peritoneais, proliferarem, invadirem, e se transformarem na doença conhecida como endometriose.

Essa teoria passou por múltiplas adaptações pelo próprio Sampson e por outros para acomodar novas informações. É interessante ler os trabalhos iniciais e um dos últimos trabalhos de Sampson, como um guia para entendermos completamente os pensamentos que moldaram a sua teoria [2].

Sampson desponta no cenário da endometriose em 1921 [3], com uma pesquisa feita com 23 pacientes que tinham cistos de conteúdo achocolatado, apesar da endometriose ter sido confirmada por biópsia em apenas nove casos. Esta atenção focada nos ovários o convenceu que estes eram os locais mais comuns da endometriose, e ele propôs que a doença surgia nos ovários como resultado de metaplasia (nota do tradutor: transformação de um tipo celular em outro), ou restos embrionários. Ele notou que os ovários acometidos pela endometriose estavam frequentemente aderidos à parede pélvica lateral ou ao útero, locais nos quais também eram possíveis se encontrar endometriose. Ele deduziu que a endometriose presente nesses locais da pelve contíguos aos ovários era resultado da extensão direta ou da semeadura do sangue menstrual provindo dos cistos de endometriose ovarianos, ou de doença superficial proveniente do córtex ovariano. Assim como Cullen [4, 5, 6, 7], Stevens [8] e Lockyer [9] que o antecederam, ele descreveu aderências severas entre o reto e o útero no fundo de saco de Douglas que poderiam acompanhar os endometriomas ovarianos, e propôs que tais aderências seriam resultantes de uma irritação peritoneal contínua devido a extravasamento líquido mensal proveniente dos cistos ovarianos. Apesar de ele ter reconhecido que a endometriose poderia estar presente na forma “adenomiomatosa” abaixo das aderências com acometimento tanto da parede retal como do estroma cervical, o seu foco nessa forma da doença (a qual agora é conhecida como bloqueio de fundo de saco) foi mais de um ponto de vista de processo aderencial do que propriamente um processo endometriótico. Observando que apenas nove de 16 mulheres casadas tinham engravidado, em uma época quando se esperava que a taxa de gestação fosse próxima de 100%, Sampson introduziu o conceito de que a gestação protegia contra a endometriose, ou que a infertilidade a causava. Isso foi antes que fatores tubáreo, ovulatório e masculino fossem comumente reconhecidos como possíveis fatores de infertilidade, e certamente bem antes do conhecimento atual de que a dor (e não a infertilidade) é o sintoma mais comum e mais específico da endometriose.  Naquele tempo, o termo “adenomioma” era usado para descrever a forma histológica do que hoje é conhecido como endometriose invasiva ou profunda, onde a glândula e o estroma da endometriose são circundados por um denso tecido fibromuscular metaplásico que de alguma forma se assemelha ao que pode ser visto em um leiomioma.

Com maior experiência e influenciado pela antiga literatura, Sampson mudou seus pensamentos em 1922, apesar de não necessariamente para uma forma mais clara [10]. Ele notou que Russel em 1899 havia se referido a trabalhos de Nagel e Waldeyer, que haviam descoberto que o epitélio germinativo da parede fetal posterior originava todas as estruturas Müllerianas (nota do tradutor: as estruturas Müllerianas são as trompas uterinas, o útero, e o terço superior da vagina). De fato, existiam evidências que o epitélio do próprio ovário maduro poderia originar endometriose, já que o epitélio germinativo poderia ser identificado em cortes seriados do córtex ovariano e vistos se transformarem em estruturas tubulares contendo estruturas glandulares que se assemelham ao endométrio. Enquanto isso parecia solidificar a hipótese de uma origem embrionária para a endometriose, Sampson seguiu em outra direção, baseado em especulação e conceitos duvidosos que pareciam corretos a ele naquele tempo:

  1. Ele observou que a superfície do ovário poderia conter epitélio ciliado semelhante ao revestimento epitelial da trompa de Falópio, concluindo então que o epitélio Mülleriano da trompa de Falópio poderia se descamar e extravasar pela porção fimbrial no final da trompa, aderir-se, e implantar-se no ovário.
  2. Ele concluiu que os túbulos ovarianos de Nagel e Waldeyer deveriam ser o resultado de implantação de epitélio proveniente da trompa de Falópio, ou endométrio sobre o ovário com a formação secundária de túbulos.
  3. Ele concluiu que esses túbulos eram a origem da endometriose ovariana e que os ovários eram os locais mais comuns da doença, em parte porque eles estão muito próximos às trompas uterinas.
  4. Ele concluiu que a endometriose se formava tardiamente durante a vida, geralmente após os 30 anos, porque ele havia visto apenas duas pacientes com menos de 30 anos, e então a endometriose não poderia ser um processo congênito, pois de outra forma seria vista logo após a menarca (nota do tradutor: primeira menstruação).
  5. Por algum método de estudo não claro, ele notou que a endometriose peritoneal e ovariana pareciam ter a mesma idade cronológica, então elas deveriam ter os mesmos locais e tempo de origem, como a menstruação retrógrada.
  6. Observando bloqueio do fundo de saco, leiomiomas e pólipos uterinos em algumas (mas não em todas) pacientes, ele concluiu que essas doenças poderiam ser causadas pela passagem retrógrada de sangue menstrual pelas trompas de Falópio, as quais sempre pareciam estar abertas, facilitando, portanto o desenvolvimento da endometriose.
  7. Ele notou que as aderências ovarianas associadas à endometriose tinham a mesma distribuição daquelas aderências resultantes de salpingite que se espalhava a partir das trompas, e, portanto elas deveriam ter uma origem semelhante, como a menstruação retrógrada.
8. Ele notou que algumas pacientes podiam ter endometriose adenomiomatosa sem a presença concomitante de cistos de endometriomas ovarianos, indicando que, infrequentemente, poderia existir endometriose peritoneal sem a presença de doença ovariana.
Eu e o doutor David Redwine, em 2014, quando ele esteve no Brasil.

Em sua versão final da teoria da menstruação retrógrada [1], ele concluiu que os ovários não eram tão frequentemente acometidos como ele inicialmente pensava. Poderia haver doença peritoneal na ausência de doença ovariana, que na verdade parecia mais comum e com maior importância clínica que a doença ovariana, uma posição que ele mais tarde afirmaria [2]. Como ele havia visto sangue menstrual refluindo pelos óstios tubáreos em cirurgias realizadas durante o período menstrual, e como algumas trompas uterinas removidas durante histerectomias continham fragmentos de endométrio, ele concluiu que a menstruação era a provável causa da endometriose pélvica e ovariana, e que a ruptura dos cistos ovarianos poderia resultar em doença peritoneal por implantação secundária. É claro também em seus trabalhos que o modo de disseminação do câncer ovariano influenciou enormemente as suas conclusões sobre a disseminação da endometriose. É claro também que ele considerou a endometriose como sendo idêntica ao endométrio e que as tubas uterinas eram comumente abertas. Entre os 293 casos diagnosticados cirurgicamente até aquele momento em sua carreira, seis tinham obstrução tubária, e então ele concluiu que a menstruação retrógrada devia ter acontecido antes que a obstrução se formasse. Ele passou grande parte do restante de sua carreira defendendo a sua teoria de ataques de Emil Novak, um dos eminentes ginecologistas da primeira metade do século 20. Dr. Novak era altamente cético sobre as evidências suportando a menstruação retrógrada como origem da endometriose, e defendia a teoria da metaplasia celômica [11].

Por onde começar? Como pode um estudo com um número tão pequeno de pacientes, no qual não houve a confirmação histológica de endometrioma ovariano na maioria delas, ser aceito como o seu trabalho seminal sobre a doença? A relação de causa e efeito entre endometriose e infertilidade proposta por Sampson não parece se sustentar, pois outros fatores de infertilidade não foram considerados, e a noção de que a taxa de fertilidade habitual é próxima de 100% parece injustificada nos dias de hoje. Sampson poderia facilmente ter defendido que a maioria de suas pacientes casadas tinha engravidado, e, portanto a gestação ou a fertilidade são causas de endometriose. Não havia qualquer evidência de que o epitélio tubáreo se descama, adere ao ovário e se transforma nos túbulos ovarianos descritos por Nagel e Waldeyer. Sampson também pegou evidências que haviam sido previamente interpretadas por aqueles que a desenvolveram e que mostravam a transformação do epitélio ovariano cortical em tecido glandular (de “dentro para fora”), e a mudou conforme o seu pensamento, agora introduzindo a interpretação de que elementos glandulares se posicionam sobre o ovário e começam a invadi-lo (de “fora para dentro”). Novamente, não havia nenhuma evidência real para suportar essa usurpação intelectual. A paciente mais jovem diagnosticada com endometriose tinha 10,5 anos [12], e uma vasta literatura sobre a aparência visual da endometriose mostra que as adolescentes podem, de fato, terem endometriose, a qual comumente não é identificada porque é tão sutil. Leia um texto do doutor Redwine sobre endometriose em adolescentes e a história da adolescente Clara Flaviane, de 16 anos. A conclusão incorreta de Sampson de que a endometriose se forma apenas mais tardiamente era claramente consequência de um viés de seleção, já que ele se concentrava em uma forma da doença que era aparentemente mais visível e mais frequentemente diagnosticada devido à presença dos endometriomas ovarianos, os quais ocorrem mais comumente em mulheres de maior faixa etária. A sua conclusão de que a endometriose não poderia ser congênita era insustentável, pois ela surgiu de dados incorretos, e, portanto erode outro dos pilares que sustentam sua teoria. Em relação à ideia de que alterações estruturais ou de posição do útero poderiam favorecer a menstruação retrógrada e o desenvolvimento da endometriose, ele aparentemente não considerou a possibilidade de que a endometriose poderia estar presente antes do surgimento de miomas uterinos ou da retroversão uterina associada ao bloqueio do fundo de saco, o que torna duvidoso o conceito de facilitação da menstruação retrógrada por essas condições. A conclusão de que as aderências da endometriose devem ter uma origem tubária, já que são semelhantes às adesões resultantes de salpingite, é claramente igual à comparação de maçãs a laranjas. O local mais comum de acometimento pela doença começou a mudar na mente de Sampson dos ovários para o peritônio, especialmente o fundo de saco, um processo tido como facilitado pelos efeitos da gravidade, apesar de existir uma plausível explicação alternativa baseada na organogênese pélvica fetal através da cavidade celômica posterior [13]. O conceito de que a endometriose é semelhante ao endométrio foi totalmente desconstruído por pesquisas modernas [14].

A maior parte da teoria de Sampson foi divulgada com base em especulação, erros de interpretação e crenças, ajudada pela falácia de Berkson e enviesada pelo pequeno número de casos visto em sua carreira. Além disso, Sampson tinha claramente um viés para suportar sua teoria e foi o seu grande defensor durante duas décadas. Se a sua teoria for incorreta, ele pode ser perdoado, pois ele trabalhava com o melhor que tinha em mãos. Mas o que dizer do suporte e defesa atuais dessa teoria? Nós temos muito mais evidências do que tinha Sampson. Como nós a utilizamos? Infelizmente, não muito bem. Na ausência de Sampson, gerações de autores fizeram apologia à sua teoria. O que foi escrito no passado distante foi constantemente repetido sem pensar, ou sem considerar as evidências mais recentes. Os dados atuais por vezes são grotescamente modificados para suportarem a teoria da menstruação retrógrada. Há muitos desses exemplos que são claramente identificados pelos clínicos atuais.

... na ausência de Sampson, gerações de autores fizeram apologia à sua teoria. O que foi escrito no passado distante foi constantemente repetido sem pensar, ou sem considerar as evidências mais recentes. Os dados atuais por vezes são grotescamente modificados para suportarem a teoria da menstruação retrógrada...


Nota do Tradutor:
Queridas Leitoras do Blog A Endometriose e Eu
Explicar a endometriose como sendo causada pela menstruação retrógrada talvez seja um dos maiores enganos da Medicina moderna, e, como bem destacado, a maior responsável pela ausência de avanços reais no tratamento da doença. Peço às leitoras que leiam com carinho e atenção esse artigo, publicado em duas partes. Compreender a discussão relacionada à origem da endometriose significa aumentar enormemente as chances de conseguir tratamento adequado e efetivo para a doença.
Nesta primeira parte, Dr. Redwine nos explica que as falhas da teoria da menstruação retrógrada de Sampson decorrem principalmente de como ele interpretou equivocadamente suas observações. Por exemplo, ao observar que quase todas suas pacientes tinham acima de 30 anos, Sampson concluiu que a endometriose só surgiria após essa idade. Ao observar a presença de sangue menstrual na cavidade pélvica em pacientes que eram operadas durante a menstruação, Sampson concluiu que células endometriais livres na cavidade poderiam formar as lesões endometriose. E assim por diante...
Este é certamente o artigo mais importante escrito pelo Dr. David Redwine. Importante, pois aborda a raiz de todo o problema da endometriose: nós médicos só temos chances de tratar corretamente uma doença se conhecermos suas causas e o motivo pelo qual ela se desenvolve. Isso vale para a endometriose, isso vale para qualquer doença. Assim, se entendermos que a endometriose seja causada pela menstruação, estaremos possivelmente fadados às falhas. Por outro lado, se entendermos que a doença está presente desde o período fetal, e que ela se desenvolve lentamente ao longo da vida (até por volta dos 25 a 35 anos), teremos chances de sucesso no tratamento, especialmente o tratamento cirúrgico, quando for necessário. A essência de tudo é só uma: como e porque acontece a endometriose? Eu a tratarei da forma como entendê-la.



Sobre o doutor Alysson Zanatta:
Graduado e com residência médica pela Universidade Estadual de Londrina, doutor Alysson Zanatta tem especializações em uroginecologia e cirurgia vaginal pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), cirurgia laparoscópica pelo Hospital Pérola Byington de São Paulo e doutorado pela Universidade de São Paulo, USP. Suas principais áreas de atuação são a pesquisa e o tratamento da endometriose, com ênfase na cirurgia de remoção máxima da doença. Seus inter­esses são voltados para iniciativas que promovem a conscientização da população sobre a doença, como forma de tratar a doença adequadamente. É diretor da Clínica Pelvi Uroginecologia e Cirurgia Ginecológica em Brasília, no Distrito Federal, onde atende mulheres com endometriose, e ex-professor-adjunto de Ginecologia da Universidade de Brasília (UnB). (Acesse o currículo lattes do doutor Alysson Zanatta). 

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