Faz alguns meses
que quero contar a história da americana Kristi An Rose com sua endometriose. No
mesmo momento que li, já pensei em colocá-la no blog, mas o que dizer, como dizer,
se esse final não foi nem um pouco feliz. Feliz é uma palavra oculta na vida da
portadora que convive diariamente com as dores incapacitantes da doença. Falo
isso por minha própria experiência. Viver com dores, 24 horas do dia é um
desafio que pode nos levar à loucura extrema. Eu vivi com muitas dores por 21 anos. Principalmente, se o ambiente o
qual vivemos ignora ou zomba com essa dor. É preciso muita coragem para seguir
em frente, é preciso ser forte mesmo sendo fraca, é preciso perseverança e
muita fé para não esmorecer e se perder no meio do caminho. No meu caso, a vida
sempre me enviou anjos terrenos que me ajudaram a seguir em frente e superar
essas turbulências. Porém, eu nunca tive coragem de tentar contra minha própria
vida. A vida é algo muito sagrada, somente Deus dá e pode tirá-la. Mas a doença
nos enfraquece de tal maneira que esse pensamento nem passa pela nossa cabeça. Acho que todos que lerem derrubará algumas
lágrimas, mas é preciso mostrar a verdade. E essa verdade só pôde ser contada
por conta da coragem de uma mãe. Uma mãe que quer salvar outras vidas, já que a
de sua filha não pôde ser salva. Quantas vidas já não foram perdidas como a de
Kristi? Até onde a dor pode nos levar? É uma dor que aprisiona, que atormenta, que lateja, que arde, que não para, que sufoca e que pode matar, sim, e nos levar ao ápice da loucura.
A maioria de nós, assim como Kristi (e eu também) ficamos felizes quando recebemos o diagnóstico. Pensamos que nosso sofrimento acabou ou que está perto do fim!? Mero engano! Para muitas, ele está apenas começando. Lembro-me bem desse meu dia, quando um anjo do outro lado do telefone disse: "Descobri o que você tem: endometriose." Se um dos
principais papeis do A Endometriose e Eu é espalhar a conscientização da
doença, além do reconhecimento social no país pelos nossos governantes, por que
não contar uma história de final trágico, mas real, verdadeira? Quantas de nós
já não ouvimos frases, como: “suas dores são psicológicas”, “você quer chamar
atenção”, “não é nada, ela está com manha e precisa de colo”, dentre muitas
outras.... ouvir isso de amigos e ou familiares é algo habitual, que machuca,
corrói por dentro. No caso de Kristi, frases assim eram proferidas por médicos.
Pois é, quem deveria escutá-las e entendê-las. Graças a Deus nenhum desses
entrou em meu caminho. Ainda bem que Kristi tinha uma mãe que acreditava em
tudo que ela sentia, mas isso não foi suficiente. Kristi cansou de viver no “inferno
em vida”. É assim que muitas vivem. Algumas terão chances de sorrir novamente
(como eu!), mas outras infelizmente não. As que sofrem com as dores
incapacitantes e que são incompreendidas estão sempre ao extremo de cometer
alguma loucura. Quantas brasileiras não tiveram o mesmo destino de Kristi. Eu
sei de muitos casos de tentativas de suicídio. É claro que isso não é a
solução. Pode ser para o corpo físico, mas não para o espiritual. É um assunto
delicado, que serve de alerta para salvar vidas femininas. Foi por isso Sherill
quis compartilhá-la. Não pôde salvar sua
filha, mas poderá salvar outras. Eu também estou aqui para ajudar àquelas que precisarem de compreensão ou de uma palavra amiga. Beijo
com carinho! Caroline Salazar
Para que mais ninguém sofra
Tradução: Alexandre Vaz
Edição: Caroline Salazar
Kisti An Rose sofria de endometriose havia 12
anos, desde 1997 até Maio de 2009, o dia em que apontou uma arma à sua cabeça e
puxou o gatilho. Foi um final trágico de uma vida que tinha grandes esperanças,
uma vida que deixou saudade, uma vida que poderia ter sido diferente se um
maior número de profissionais da comunidade médica soubesse o quão debilitante
a sua condição era, soubesse o quanto ela sofria, e quisesse levar mais a sério
o caso dela, tal como descrito pela sua mãe Sherill Rose Hill.
O início do pesadelo
Na escola, Kisti era muito dada. Após
concluir a graduação em Northwestern High School, ela se tornou viciada no
trabalho. Ela tinha vários trabalhos e adorava o que fazia. Sempre gostou das
artes, especialmente a fotografia. Mas aos 17 anos, já tinha problemas de
saúde.
“ Kristi tinha dores muito fortes no abdômen
durante o período menstrual. Não eram dores normais, então, eu a levei para ser
observada em alguns médicos. Todos afirmaram o mesmo. Que ela era uma adolescente
tentando se evidenciar para receber atenção. Mas essa não era a Kristi, ela não
faria isso. Acabei levando-a para Indianápolis para ser observada pelo doutor
David McLaughlin, do Women's Speciality Health Centers (Centro médico de
especialidades femininas). Ele disse que imaginava saber qual era o problema.
Executou uma laparoscopia na Kristi em 12 de fevereiro de 1997. O diagnóstico
foi endometriose.” “Ela ficou muito feliz por saber qual era o problema que
tinha no seu corpo, porque todo o mundo falava que ela estava inventando. Mas
ela sabia que não era invenção.”
A endometriose ocorre quando um tecido
semelhante ao que reveste o útero (designado por endométrio) se encontra fora
do útero, geralmente no abdômen nos ovários, trompas de falópio e ligamentos
que suportam o útero, na região entre a vagina e o reto, na parede externa do
útero; e no revestimento da cavidade pélvica, de acordo com a Endometriosis
Association (Associação para Endometriose).
De acordo com a Cleveland Clinic, os sintomas
para a endometriose não estão limitados aos seguintes, mas incluem:
• Dor extrema (ou
incapacitante) durante o período menstrual. A dor fica pior com o tempo;
• Dor pélvica crônica
(incluindo as zonas lombar e pélvica);
• Dor durante ou após o ato
sexual;
• Dor nos intestinos;
• Movimentações dolorosas dos
intestinos e micção dolorosa durante o período menstrual;
• Sangramento abundante
durante o período;
• Pequenas perdas
pré-menstruais ou sangramento entre períodos;
• Infertilidade.
Alguns meses mais tarde, Kristi fez uma
laparotomia microlaser para vaporizar os focos de endometriose. Pela primeira
vez em anos, ela se sentiu melhor. A dor tinha passado e ela estava feliz. Tal
como Sherill, sua mãe. Doía demais ver a sua filha num sofrimento tão grande.
Mas então, a endometriose voltou. Os estudos mais recentes mostraram que a
endometriose volta entre 20% a 40% dos casos nos primeiros cinco anos após a
cirurgia, de acordo com a Cleveland Clinic. A de Kristi voltou em menos de um
ano. Foi novamente operada para vaporizar mais tecido. Voltou novamente.
Em Outubro de 2000, Kristi e Sherill pegaram
um vôo para Oregon, nos Estados Unidos, para consultar um especialista. Esse
médico executou uma ooforectomia, removendo o seu ovário esquerdo. Descobriram
que as suas trompas de falópio estavam cheias de óvulos. A endometriose impediu
que eles descessem para o útero mensalmente. Alguns perguntarão por que ela não
teve uma histerectomia. Segundo Sherill: “Os médicos hesitaram em fazer uma
histerectomia por Kristi ser ainda tão jovem”.
Além disso, a histerectomia não é uma cura. Atualmente, não existe
uma cura para a endometriose. Mesmo fazendo uma histerectomia ou removendo
apenas os ovários, não é garantido que a endometriose ou seus sintomas não regressem.
Após a cirurgia em Oregon, Kristi permaneceu
com dor. “Foi uma grande desilusão. Pensamos que ela ia ficar bem, e que o
pesadelo ia terminar”, contou Sherill . Kristi estava com dor constantemente.
Sua mãe pesquisou na internet, tentando encontrar alguém que pudesse ajudar. Em
2003, Kristi e Sherill foram para Birmingham, no Alabama, consultar um
especialista no Chronic Pelvic Treatment Center (Centro de tratamento para
problemas pélvicos crônicos).
“Quando chegamos lá estávamos muito
esperançosas”, falou Sherill . Ao sair, trazíamos um relatório com cinco
problemas diferentes. Todos eles relacionados com endometriose.” Síndrome
pélvico congestivo grave, vestibulite vulvar, mialgia do assoalho pélvico,
síndrome de intestinos irritáveis e pontos de pressão que despole taram dor na
parede abdominal. A Kristi também sofria de fibrose intersticial grave da
bexiga com formação de cistos intersticiais crônicos, uma condição da qual
resulta em desconforto e dor recorrentes na bexiga e na região pélvica envolvente.
O relatório da autópsia dá uma ideia de quão
invasiva era a endometriose no corpo de Kristi. Estava no seu fígado, nos seus
intestinos, no rim direito. O seu ovário direito tinha múltiplos cistos com
grandes “cistos chocolate” (cistos que se formam quando o tecido endometrial
penetra no ovário), incluindo um que tinha estourado momentos antes de sua
morte. As suas trompas de falópio continham adesões ao seu útero e parede
pélvica. Tinha também múltiplas aderências fibrosas na região pélvica. “O médico
que efetuou a autópsia falou que ela tanta endometriose que ele nunca tinha
visto igual”, disse Sherill.
Falar que Kristi vivia com dor é abordar a
questão de um jeito bem suave. Kristi acabou desistindo. Cansou de médicos, de
hospitais, de dor. Em 2006, Mike Hill, marido de Sherill e padrasto de Kristi,
foi diagnosticado com câncer. Sherill ficou com o coração dilacerado e dividida
entre ajudar seu marido e sua filha, já que estavam ambos em sofrimento.
“Eu falei que íamos encontrar uma solução para
ela”, disse Sherill. Ela acabou implorando para sua filha que aguentasse firme
até que descobrissem alguém capaz de ajudar. Mas ela não tinha seguro de saúde.
Sua mãe tinha de pagar por todas as despesas médicas. Kristi odiava isso. Ela
era independente, queria cuidar de si mesma. Em 16 de abril de 2009 Mike Hill
faleceu. “Olha bem pra ele. Está em paz. Eu adoraria estar em paz assim”, disse
Kristi.
Ela estava tendo convulsões e encontrava-se
praticamente acamada a essa altura. Eu estava tendo maus pressentimentos. Por
esse motivo, escondi a arma que tínhamos em casa. Três dias antes de morrer, Kristi
falou que já não queria mais viver assim. Que eles não sabiam como a curar. Eu
implorei para ela que me deixasse procurar mais, ver quem mais poderia ajudar.
Nós íamos encontrar uma solução. Mas ela rejeitou falando que eu não ia levá-la
e outro médico, pois iria gastar mais dinheiro para falar que não sabia o que
mais poderia fazer por ela.
Sherill ficou preocupada com sua filha.
Kristi estava cada vez mais deprimida. Uma carta escrita por ela, em 4 de abril,
mostra seus pensamentos: “ Estou tão cansada de dor. É suficiente para levar à
loucura. Ter dor constante chega a dar vontade de desistir. Permitir ao meu
corpo fragilizado que descanse. O meu corpo não aguenta mais. O meu cérebro já
passou do ponto de ceder. Deus, o meu coração está quebrado.”
No dia 7 de maio de 2009, Sherill estava
voltando para casa de uma curta viagem ao Kentucky e ligou para a filha. “Estou
quase chegando em casa”, disse Sherill , com lágrimas correndo pelo seu rosto. Krsiti
falou que queria que eu sempre lembrasse
que ela me amava muito, muito, muito, muito, muito, muito, muito, muito, muito,
muito mãe... e continuava repetindo, muito, muito, muito, muito, muito, muito,
muito... Eu respondi que a amava muito, muito, muito, muito, muito, muito
também.
Enquanto Sherill dirigia para casa, Kristi
procurou na casa e encontrou a arma.
Saiu para o quintal atrás da casa, apontou na
cabeça e puxou o gatilho.“Quando cheguei em casa a polícia estava na
entrada. Não consegui estacionar o carro. Meu filho Tom estava lá também. Tenho
outro filho, o Michael. O Tom tinha ido lá em casa e os vizinhos pegaram ele,
falando que a sua irmã estava caída no quintal. Ele foi e segurou a Kristi. Ela
não falava nada. Na hora ele só pensava que tinha que dar um jeito de remediar
a situação antes do um retorno. Assim que eu parei o carro na entrada, Tom
correu pra mim e me apertou com tanta força que eu mal conseguia respirar. Foi
aí que ele falou que a Kristi tinha atirado em si mesma. Perguntei se ela
estava viva, ele falou que sim, que os médicos estavam tentando estabilizá-la. Não
me permitiram ir ao quintal, e pareceu uma eternidade o tempo que demorou para
trazerem ela à ambulância. Gritei pra ela lutar com todas as suas forças, e em
seguida fomos para o hospital. Não demorou muito tempo para que viessem me
falar que ela não tinha resistido. Perguntei se podia vê-la, e me levaram até
ela. Bastou olhar para perceber que tinha terminado para ela. Ela tinha sofrido
demasiada dor, a dor era sua companhia diária. Os médicos não tinham levado a
sério tanto quanto deviam e poderiam”, contou Sherill.
“Eu estive ao lado dela o tempo todo, não ia
abandonar minha filha nessa hora. Fui a Greenwood onde fazem a cremação.
Beijei, falei para ela e assisti enquanto a preparavam”, disse Sherill. Nesse
momento Sherill desabou em lágrimas. A sua filha tinha se suicidado vinte dias
após a morte de seu marido. Vinte dias após o suicídio, Sherill teve um sonho.
Nele Kristi estava sorrindo, correndo livre e feliz. Não teve funeral. Ela
sempre falou que queria ser cremada.
“Essa foi a única coisa que me manteve
seguindo em frente, pois agora eu sei que ela não está mais com dor. Agora eu
choro apenas por mim, por me sentir só e sem saber o que fazer. Não sei mesmo o
que fazer agora. O que Sherill fez, junto com seus dois filhos, foi criar um
fundo em memória à Kristi, com as receitas revertendo para o Centro de Pesquisa
para Endometriose.