No primeiro texto
de 2015, o doutor Alysson Zanatta, especialista em endometriose da Clínica Pelvi, de Brasília,
explica tudo a respeito do endometrioma a pedido da leitora Luciane Gonçalves, do Rio de Janeiro.
O que realmente significa endometrioma de ovário? Ele poderá se transformar em
câncer ovariano no futuro? Para quem tem endometrioma e quer engravidar, é
aconselhável congelar os óvulos antes da cirurgia? O endometrioma poderá causar
a perda da reserva ovariana da mulher? Ele é o causador de dor crônica pélvica?
Qual a relação entre endometrioma e endometriose profunda? Um texto espetacular
que vai sanar todas as suas dúvidas sobre este tipo de endometriose. E que
venha 2015, um ano muito especial! Beijo carinhoso!! Caroline Salazar
Por doutor Alysson Zanatta
Edição Caroline Salazar
O Verdadeiro Significado do Endometrioma
de Ovário
O endometrioma de ovário é um cisto de conteúdo líquido, tipicamente
“achocolatado” (Figuras 1 a 3),
presente em cerca de 20% das mulheres com endometriose (1). Chama-se
endometrioma porque em sua pseudocápsula são encontradas quantidades variáveis de
glândulas e estroma endometrial, que se parecem com o endométrio (a camada
interna do útero), porém com grandes diferenças. Os endometriomas ovarianos são
facilmente diagnosticados por meio da ultrassonografia transvaginal, e, por
esse motivo, muitas mulheres recebem o diagnóstico inicial de endometriose após
a detecção do endometrioma à ultrassonografia, algumas vezes de forma
incidental.
 |
Figura 1 - Endometriose
profunda com associação de endometrioma em ovário esquerdo. O ovário com
endometrioma encontra-se quase que invariavelmente aderido à lesão de
endometriose profunda, neste caso nos ligamentos largo e útero-sacro esquerdo
(seta). Linhas pontilhadas demonstram duas lesões de endometriose profunda,
sendo (a) aderida ao endometrioma e (b) como falha peritoneal (lesão de Allen
Master) no fundo de saco de Douglas, a qual é a “ponta do iceberg” de uma lesão
profunda.
 |
Figura 2 – líquido achocolatado típico contido no endometrioma ovariano
|
 |
Figura 3 –retirada da pseudocápsula do endometrioma ovariano com preservação ovário |
|
Endometrioma ovariano significa endometriose
profunda e doença avançada
E qual o significado da presença de um endometrioma em uma
mulher que tenha endometriose? Seu
principal e mais importante significado é que o endometrioma está associado
à presença de ao menos uma lesão de endometriose profunda em 99% dos casos (1). Ou seja, um laudo de
ultrassonografia (ou ressonância magnética) que mencione apenas o
endometrioma ovariano tem 99% de chances de estar incorreto. Em minha
experiência pessoal, ao longo de 10 anos tratando mulheres com endometriose,
jamais tive a oportunidade de observar durante as cirurgias qualquer paciente
que tivesse um endometrioma isolado sem outras lesões de endometriose profunda.
O endometrioma ovariano surgirá apenas após o aparecimento de outras lesões na
pelve, especificamente as lesões profundas. Portanto, o endometrioma
ovariano é um marcador fidedigno da presença de endometriose profunda.
Além de ser um marcador de endometriose profunda, a
presença do endometrioma sinaliza a existência de endometriose mais extensa e mais
avançada. Banerjee e colaboradores (2) demonstraram que mulheres
com endometriomas têm quase 7 vezes mais chances de terem endometriose
intestinal quando comparadas com aquelas que não os têm. Em números absolutos,
estes pesquisadores encontraram que 77% das mulheres com endometriomas tinham
endometriose no retossigmoide (intestino). Da mesma forma, Chapron e
colaboradores (3) relataram que mulheres com endometrioma
tinham, além de um maior número de lesões de endometriose profunda, uma maior
frequência de acometimento do ureter, da vagina, dos ligamentos útero-sacros,
do intestino, e ainda uma maior chance de distorção anatômica severa.
Esses dados estão de acordo com os
relatos de maiores dificuldades para remoção cirúrgica da endometriose
encontradas naquelas mulheres que têm endometrioma. Dessa forma, não
infrequentemente ouvimos que “o endometrioma (ou o ovário) foi retirado, mas o
médico não mexeu em outras lesões porque havia muitas aderências”, ou que “havia
muito risco de infecção”, ou ainda que “havia muito risco de lesão no
intestino”. Isto se deve à “surpresa” de se encontrar extensas lesões de
endometriose profunda nessas pacientes com endometrioma ovariano. Assim,
torna-se um erro indicarmos uma cirurgia baseados exclusivamente no achado do endometrioma,
e outro erro acreditarmos que encontraremos durante a cirurgia apenas o
endometrioma demonstrado na nos exames de imagens. Costumo dizer que não existe
cirurgia de endometrioma ovariano. Existe sim cirurgia para remoção de
endometriose profunda com tratamento concomitante do endometrioma.
O endometrioma ovariano parece não ser
o causador dor pélvica?
Curiosamente, parece que o endometrioma por si só não causa dor, isoladamente. Há menos
fibras nervosas (responsáveis pela transmissão dos estímulos dolorosos) no
endometrioma de ovário do que nas lesões de endometriose peritoneal ou profunda
(4). De acordo com isso, a dismenorreia
(cólica menstrual), por exemplo, parece estar mais associada à presença de
endometriose nos ligamentos útero-sacros (o local mais comum de endometriose
profunda) e no retossigmoide, do que à presença do endometrioma ovariano (5). Da mesma forma, já
está demonstrado que a dor durante a relação sexual (dispareunia) está
fortemente associada à presença de endometriose no fundo de saco de Douglas
(espaço entre o útero e o retossigmoide) e ligamentos útero-sacros, mas não com
os endometriomas ovarianos (6). Assim, se realizamos
uma cirurgia em uma mulher com dor que tenha endometriose profunda e
endometrioma, mas tratamos apenas o endometriomas, haverá grandes chances que
sua dor persista, pelo simples fato de haver persistência das lesões de
endometriose profunda.
O endometrioma ovariano causa redução
da reserva folicular
Outra
importante preocupação em relação à presença do endometrioma é a sua influência
sobre a reserva folicular (óvulos) da mulher. Hoje, sabemos que o endometrioma
é nocivo ao ovário. O ovário que tem endometrioma irá ovular com menor
frequência, e a qualidade de seus óvulos possivelmente será inferior (7). Por outro lado, a remoção cirúrgica do
endometrioma também pode ser nociva ao ovário (8,9), variando conforme a experiência da
equipe cirúrgica. Estes dados embasam o grande dilema sobre a decisão de uma
paciente que tenha endometrioma ovariano de ser operada ou não: se operamos,
podemos estar reduzindo a reserva ovariana. Porém, se postergamos uma cirurgia
que seja necessária, o próprio endometrioma poderá causar redução progressiva
da reserva folicular. Assim, a decisão por cirurgia (e do melhor momento) pela
mulher que tem endometrioma deverá ser mais criteriosa, fundamentada em sua
idade, estimativa de reserva ovariana, e bilateralidade (ou não) dos
endometriomas. Frequentemente, poderá ser aconselhado à mulher com endometrioma
que faça congelamento de óvulos ou
embriões antes de uma cirurgia, mesmo que os óvulos possam ser de pior
qualidade, como ressaltado anteriormente.
Associação entre endometriose, endometrioma
ovariano e risco de câncer de ovário
A
suspeita de uma associação entre endometriose e câncer de ovário é antiga. Sabemos
que dois subtipos específicos de câncer de ovário, o câncer endometrioide e o
câncer de células claras, parecem surgir especificamente a partir de lesões de
endometriose atípica, que são aquelas lesões que têm células com potencial maligno.
Felizmente, menos de 3% das mulheres com endometriose têm endometriose atípica.
Em linhas gerais, parece existir sim um aumento do risco de câncer, mas esse
aumento é pequeno em número absolutos, algo como um aumento de 1,5% para 2,5%
ou 3% (10).
Analisando subgrupos específicos de mulheres com
endometriose, parece que esse aumento no risco de câncer é ainda maior naquelas
mulheres que têm endometrioma ovariano, e naquelas que têm endometriose de
longa data (10). Não sabemos se alterações celulares
específicas do endometrioma ovariano é que causariam esse pequeno aumento no
risco, ou se simplesmente seriam as demais lesões de endometriose profunda. De
qualquer forma, os aumentos dos riscos são pequenos, e, dentro do grande
universo de mulheres com endometriose, ainda não conseguimos identificar
especificamente quais mulheres teriam esse risco aumentado, e que, portanto, se
beneficiariam de uma remoção cirúrgica precoce. Assim, aguardamos novas
pesquisas para maiores conclusões sobre o tema.
Tratar o endometrioma ovariano é
desafiador
O tratamento do endometrioma ovariano é um dos mais
desafiadores entre todas as lesões de endometriose. Isso porque estamos lidando
com a reserva ovariana da mulher, o seu maior patrimônio. Em uma comparação
simplista, por exemplo, nos preocupamos mais com o tratamento cirúrgico de um
endometrioma ovariano do que o de uma endometriose intestinal, pois os danos
ovarianos podem ser irreversíveis, ao passo que frequentemente conseguimos
reparar eventuais lesões intestinais.
O endometrioma ovariano não costuma desaparecer
espontaneamente. As pílulas anticoncepcionais podem ser efetivas em reduzir as
chances de recorrência após a excisão cirúrgica, mas isoladamente não conseguem
causar o desaparecimento dos endometriomas. Análogos de gonadotrofina (GnRH)
podem causar redução do tamanho dos endometriomas, apenas para recorrerem após
a sua suspensão. Há relatos isolados de desaparecimento do endometrioma com o
uso do dienogeste (Allurene®),
mas o significado clínico ainda é incerto, pois não sabemos se há resolução
definitiva a longo prazo, e se isso se reflete em preservação da reserva
ovariana e maiores índices de fertilidade.
O tratamento mais efetivo para o endometrioma ovariano é a
sua remoção cirúrgica por laparoscopia. Isso não significa dizer que todas as
mulheres com endometrioma precisarão de cirurgia. Ao contrário: como dito
anteriormente, a indicação cirúrgica para essas mulheres deverá ser bastante
criteriosa. E a indicação não deverá ser baseada exclusivamente no
endometrioma, mas sim na presença de infertilidade e no potencial de
preservação da reserva ovariana.
O raciocínio é simples: como são quase inexistentes as
chances do endometrioma ovariano ser isolado, e como o endometrioma ovariano
significa endometriose profunda, as decisões serão baseadas na endometriose profunda. Primeiro,
buscaremos entender o contexto clínico no qual se deu o diagnóstico do
endometrioma: se há dor pélvica e/ou infertilidade, principalmente. Frente a um
exame que mostra apenas o endometrioma, acreditaremos que o laudo está
incompleto, e faremos esforços para entender a real extensão da endometriose antes
de uma eventual cirurgia. Faremos isso com um minucioso exame clínico,
especialmente o exame vaginal bimanual (exame de “toque””), e com um exame de
imagem (ultrassonografia transvaginal com preparo intestinal e/ou ressonância
magnética pélvica) feito por um especialista. Não acreditamos na cirurgia
“diagnóstica” (nota da editora: a laparoscopia diagnóstica). Acreditamos
na cirurgia com o objetivo da remoção máxima da doença, caso a cirurgia seja
necessária.
O tamanho do endometrioma praticamente não influenciará
nossas decisões, mas sim a sua unilateralidade ou bilateralidade. Somos mais
propensos a pensar em cirurgia quando a doença é unilateral, e mais expectantes
quando a doença é bilateral. Ou, eventualmente, frente a um extenso
acometimento ovariano bilateral, poderemos discutir com a paciente a
possibilidade de remover as demais lesões de endometriose profunda e,
propositadamente, deixarmos de remover (ou remover parcialmente) o endometrioma
ovariano. E como isso é possível? Novamente, o endometrioma não parece ser
causa de dor, e também não há evidências de que um endometrioma ovariano
persistente após a cirurgia originará novas lesões de endometriose.
Diferentemente do pensamento comum, a endometriose “não se espalha” na pelve a
partir de outras lesões.
Considerações
finais:
O
endometrioma ovariano é um marcador de endometriose profunda, e de maiores
chances de endometriose avançada com distorção anatômica. Praticamente não
existe endometrioma ovariano isoladamente, pois ele invariavelmente vem
acompanhado de outras lesões de endometriose. O endometrioma não parece ser
causa isolada de dor pélvica, porém sua presença pode significar uma redução
progressiva da reserva folicular ovariana. Parece haver um aumento relativo no
risco de câncer de ovário a longo prazo, porém pequeno em números absolutos, e
ainda indefinido para quais subgrupos específicos de mulheres com endometriose.
Frente a um endometrioma ovariano, a decisão sobre seu tratamento não deverá
ser feita de forma isolada, mas sim dentro do contexto da endometriose
profunda.
Sobre o doutor Alysson Zanatta:
Graduado e com residência médica pela Universidade Estadual de Londrina, doutor Alysson Zanatta tem especializações em uroginecologia e cirurgia vaginal pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), cirurgia laparoscópica pelo Hospital Pérola Byington de São Paulo e doutorado pela Universidade de São Paulo, USP. Suas principais áreas de atuação são a pesquisa e o tratamento da endometriose, com ênfase na cirurgia de remoção máxima da doença. Seus interesses são voltados para iniciativas que promovem a conscientização da população sobre a doença, como forma de tratar a doença adequadamente. É diretor da Clínica Pelvi Uroginecologia e Cirurgia Ginecológica em Brasília, no Distrito Federal, onde atende mulheres com endometriose, e Professor-adjunto de Ginecologia da Universidade de Brasília (UnB). (Acesse o currículo lattes do doutor Alysson Zanatta).