quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

DAVID REDWINE: UMA REVISÃO CRÍTICA SOBRE A TEORIA DE SAMPSON - ORIGEM DA ENDOMETRIOSE - PARTE 3!

Na terceira e última parte do texto "Uma revisão crítica sobre a teoria de Sampson a respeito da origem da endometriose" leia a parte 1 e a parte 2, o médico e cientista americano David Redwine continua sua análise acerca da teoria de Sampson. Você sabia que Sampson nunca comprovou com fotos o que diz sua teoria? Que ele nunca publicou uma fotografia microscópica dos focos de endometriose menstruando? Leia o texto e a nota do tradutor que diz que a teoria da menstruação retrógrada "leva milhões de mulheres a aceitarem seu “destino” (e até mesmo a se culparem) por terem endometriose". Beijo carinhoso! Caroline Salazar


Por David Redwine
Tradução: doutor Alysson Zanatta
Edição: Caroline Salazar

Uma revisão crítica sobre o desenvolvimento da teoria de Sampson a respeito da origem da endometriose - parte 3

Em 1932 [19], Sampson deve ter sentido as objeções à sua teoria de menstruação retrógrada. Ele concordou (com relutância) que a metaplasia peritoneal poderia causar algumas das lesões de endometriose, especialmente quando não havia nenhuma endometriose ovariana para explicar a disseminação no peritônio. Entretanto, como muitas das pacientes com endometriose tinham tubas patentes, ele não desistia de uma possível contribuição do refluxo menstrual como um irritante específico para o peritônio que poderia resultar em metaplasia reativa do peritônio em endometriose. Resistindo ainda mais fortemente para defender sua teoria, ele afirmou (sem evidência direta) que detritos celulares irritativos (menstruação) ou talvez núcleos celulares extruídos de células endometriais secretoras que escaparam das porções fimbriais das tubas uterinas provocavam metaplasia irritativa do peritônio em endometriose, da mesma forma que detritos celulares que escapavam das trompas durante a gestação provocavam a reação decidual em locais similares no peritônio pélvico.  Era aparentemente desconhecido para ele a reação decidual causada pela progesterona. Ele pensava era importante algum tipo de resto celular ou nuclear, porque ele nunca havia observado endometriose em uma mulher que tivera uma gestação tubária rota anteriormente, pensando ele que a gestação tubária iria semear o peritônio apenas com sangue ao invés de quaisquer restos celulares. A validade de seu pensamento é questionável, pois com uma gestação tubária rota, os tecidos embrionário, fetal e placentário poderiam teoricamente semear detritos celulares no peritônio. Devido ao seu inabalável poder de livre associação, e sem evidências diretas, ele propôs que o tecido Mülleriano epitelial poderia estimular o tecido mesenquimal em estroma Mülleriano, mas porque então um tecido Mülleriano epitelial não poderia estimular o tecido em estroma epitelial? Ele seguiu adiante demonstrando em elegantes fotografias microscópicas que a endometriose tubária poderia surgir sob o epitélio tubário normal (independente da menstruação retrógrada), e afirmou que a inflamação e o reparo da trompa resultavam em metaplasia para endometriose, similar ao processo pelo qual a endossalpingiose pode afetar os cotos tubários [20]. Ele então sugeriu que esses depósitos de nova endometriose se descamariam durante a menstruação (nenhuma evidência de fotografia microscópica foi demonstrada) e se implantariam na pelve causando endometriose ovariana ou peritoneal. Sampson constantemente formulava questões científicas, e as respondia baseado em lógica retórica.  Fica claro que ele dependia de uma constante repetição do que ele havia publicado previamente, reforçado por fotografias microscópicas que ilustravam o seu pensamento apenas até certo ponto. Entretanto, ele nunca apresentou fotografias microscópicas robustas de endometriose menstrual, de aderência do tecido endometrial à superfície ovariana, ou de invasão e proliferação secundárias.

Em um resumo de sua carreira [21], ele se concentrou na endometriose peritoneal, afirmando que a endometriose ocorria por causa da menstruação retrógrada e que os implantes peritoneais menstruariam e criariam novos implantes, fazendo com que a doença se disseminasse, igual ao câncer de ovário. Ele admitia que não havia nenhuma prova que o tecido endometrial dos cistos ovarianos semearia e se implantaria no peritônio para se tornar endometriose, mas ele sugeria que as evidências eram muito robustas. Em uma defesa de sua teoria, ele afirmou que “se fragmentos da mucosa Mülleriana carregados pelo sangue menstrual até a cavidade peritoneal estão sempre mortos, a teoria da implantação... também está morta e deveria ser sepultada e esquecida. Se alguns desses fragmentos estiverem ocasionalmente vivos, então a teoria da implantação também está viva.”

As maiores qualidades de Sampson como pesquisador eram a sua enorme curiosidade e o seu entusiasmo pelo estudo da endometriose, assim como uma imaginação ativa que moldaram suas observações clínicas de sua teoria fervorosamente defendida, ao invés do inverso. Suas publicações eram extensas, em média com mais de 35 páginas, sendo a maior de 88 páginas. Seus trabalhos eram abundante e elegantemente ilustrados com fotografias cirúrgicas, desenhos, e fotografias microscópicas, todos bastante surpreendentes a qualquer leitor, o que daria ao seu trabalho um ar de autoridade suprema de difícil questionamento.

Muito do trabalho de Sampson não seria aprovado para publicação nos dias de hoje.

Em resumo, as fraquezas de seus argumentos superavam suas qualidades. Seus trabalhos incluíam inúmeras repetições dos mesmos pensamentos, suportados por especulações bastante detalhadas e pelo frequente uso de palavras como “talvez”, “provavelmente”, “possivelmente”, “poderia”, etc. Seus pensamentos eram pouco alterados pela passagem do tempo ou por novas descobertas, como as formas mais discretas da doença que poderiam trazer novas perspectivas para a origem da doença. Ele tentava caracterizar as objeções ou exceções à sua teoria como estranhezas incomuns que não teriam nenhum efeito real sobre a veracidade de suas crenças, ao invés de tentar modificar sua teoria para tentar explicar todos os tipos de observações. Parece que havia poucos de seus colegas dispostos a desafiar suas fortes convicções, e isso permitiu que seus pensamentos reinassem inquestionáveis por várias gerações de ginecologistas. A sua experiência clínica com a endometriose parece ter-se limitado a poucas centenas de pacientes, direcionadas à minoria de pacientes com doença avançada. Essa inexperiência resultaria obrigatoriamente em uma visão incompleta da doença que tornaria mais provável a formulação de conclusões incorretas àquela época. Como ele poderia ter proposto a correta teoria de origem da endometriose com todas essas limitações?

A sua forte convicção de que estava correto, combinada com ilustrações e repetições escolares, serviram como álibi para o que estava faltando: ele nunca publicou uma fotografia microscópica dos focos de endometriose menstruando, e publicou apenas uma fotografia microscópica de uma suposta adesão inicial [16, e figura 7], e nenhuma de proliferação secundária ou invasão de células ou fragmentos teciduais endometriais. Como ele não realizou cortes seriados dos raros exemplos de suposta adesão inicial à superfícies peritoneal do que ele assumia ser endométrio refluído, nós não sabemos se há evidência que tal tecido teria se originado no próprio peritônio sem a necessidade de menstruação retrógrada. Ele nunca discutiu a origem da metaplasia fibromuscular que circunda a doença invasiva profunda. Talvez ele tenha pensado que conciliar este achado com a menstruação retrógrada significaria postular que o miométrio também refluiria e se espalharia pela menstruação retrógrada, ou que a teoria da menstruação retrógrada não explicava a origem dos adenomas de implantação, situação na qual ele nunca teria proposto a teoria inicialmente.

A menstruação retrógrada como origem da endometriose requer que a endometriose seja cirurgicamente incurável, progressivamente disseminada, uma doença de autotransplante. Entretanto todas essas características foram desmentidas [22]. As altas prevalência e frequência de diagnóstico cirúrgico da endometriose deveriam resultar em confirmação por fotografias microscópicas das suposições de Sampson de adesão inicial do tecido refluído, assim como proliferação e a invasão, porém os investigadores que procuraram por isso nunca as encontraram. A adesão inicial e proliferação secundária permanecem como milagres sem explicação.

... menstruação retrógrada como origem da endometriose requer que a endometriose seja cirurgicamente incurável, progressivamente disseminada, uma doença de autotransplante. Entretanto todas essas características foram desmentidas. As altas prevalência e frequência de diagnóstico cirúrgico da endometriose deveriam resultar em confirmação por fotografias microscópicas das suposições de Sampson de adesão inicial do tecido refluído, assim como proliferação e a invasão, porém os investigadores que procuraram por isso nunca as encontraram. A adesão inicial e proliferação secundária permanecem como milagres sem explicação.

Apesar dessas falhas fatais, alguns autores ainda se esforçam para suportar essa teoria, a última sendo a modificação da teoria da circulação peritoneal de Sampson [23]. Esse modelo inventivo tenta explicar a pequena elevação de acometimento do ovário e do ligamento útero-sacro no lado esquerdo da pelve, comparado aos seus pares no lado direito. Os defensores dessa modificação propõem que há uma circulação natural em sentido horário (da maneira como vemos a paciente) do líquido peritoneal, mas que a porção pélvica do cólon sigmoide desvia a circulação em direção à linha média, e para longe da região pélvica. Essa área “protegida” na pelve esquerda teoricamente permitiria que tecido endometrial refluído pela trompa esquerda permanecesse mais tempo em contato com o peritônio, facilitando portanto a adesão quando comparado ao lado direito da pelve, onde o líquido peritoneal “lavaria” as células refluídas para fora da pelve. Não dispondo de evidências próprias, os autores baseiam-se inteiramente no trabalho publicado por Meyers em 1970 [24], no qual contraste radiológico foi injetado na cavidade peritoneal de homens e mulheres com câncer peritoneal, derrames, abscessos e aderências. A posição dos pacientes era modificada em uma mesa móvel, e radiografias obtidas durante as mudanças de posições. Foi publicado um diagrama esquemático (figura 2), indicando que o contraste poderia viajar virtualmente para qualquer lugar na cavidade abdominal, dependendo da posição da mesa. Além da objeção óbvia que tal trabalho não é fisiológico e não se relaciona à questão da menstruação retrógrada, há ainda uma preocupação mais séria. Para embasarem seu argumento, os autores modificaram a figura publicada por Meyers, apagando ou adicionando setas para embasarem a “evidência” para a circulação que eles propunham (figura 3). Devido a tais alterações, a figura original de Meyers também poderia “provar” que existiria apenas uma circulação em sentido anti-horário (figura 4).


Figuras 2-4 (esquerda para direita): Figura 2. A figura original publicada por Meyers [24]. Notem que há setas fortes em direção superior e inferior na goteira cólica direita com fluxo em direção ao recesso de Morrison, e uma seta fraca após a margem hepática direita, com outra seta forte indo do recesso de Morrison até o espaço subfrênico. Figura 3. Alteração hipotética da figura de Meyer. Todas as setas que demonstram uma circulação em sentido horário foram apagadas, e uma seta forte adicionada ao redor do baço, dando a impressão de uma circulação peritoneal em sentido anti-horário, e “provando” portanto que não existe uma circulação horária. Figura 4. Alteração da figura de Meyer por Bricou e colegas [23]. Notem que a seta forte de Meyer seguindo caudalmente na goteira cólica direita foi apagada e sua seta fraca ultrapassando a margem hepática direita foi substituída por uma seta forte que é contínua com a pelve. A seta forte de Meyer do recesso de Morrison até o espaço subfrênico direito foi apagada. Bricou e colegas não discutem os efeitos da seta fraca ascendendo na goteira cólica esquerda sobre a distribuição da endometriose – deveria haver frequente deposição de doença próximo ao baço (apesar da doença nessa localização ser extremamente rara ou não relatada).

Conclusão:

Há uma simbiose doentia entre a teoria de Sampson e tratamentos clínicos e cirúrgicos ineficientes. A teoria de Sampson prediz falha de todas as modalidades de tratamento, enquanto os tratamentos ineficazes é que causam essas falhas. Os médicos não têm que culpar os tratamentos ineficazes pelas falhas terapêuticas, porque “é a natureza da doença, ela sempre volta”. A teoria de Sampson direcionou o pensamento sobre a doença por muito tempo, e as mulheres têm sido fisicamente lesadas pela sua aceitação, já que repetidas cirurgias e ciclos de tratamento médico são marcas infelizes do moderno tratamento da doença. Os defensores dessa teoria têm falhado em abordar suas falhas fatais, e agora estão criando “evidências” a partir do ar. Se a teoria de Sampson for finalmente descartada, nós seremos livres para imaginarmos outra teoria de origem, possivelmente mais correta, e que seria valiosa para ambos ciência e pacientes.

... a teoria de Sampson direcionou o pensamento sobre a doença por muito tempo, e as mulheres têm sido fisicamente lesadas pela sua aceitação, já que repetidas cirurgias e ciclos de tratamento médico são marcas infelizes do tratamento moderno... se a teoria de Sampson for finalmente descartada, nós seremos livres para imaginarmos outra teoria de origem, possivelmente mais correta, e que seria valiosa para ambos ciência e pacientes.


Nota do Tradutor:

Há um ditado popular que diz que “uma mentira contada várias vezes pode se tornar uma verdade”. Da mesma forma, repete-se há um século que a endometriose é causada pela menstruação, o que tornou-se uma “verdade”, sem muitos questionamentos.

Como ressaltado neste brilhante artigo do Dr. Redwine, a teoria da menstruação retrógrada, proposta por Sampson em 1921 para explicar a origem de endometriose, está contaminada por falhas e falta da comprovação direta: a demonstração inequívoca de que o endométrio é capaz de se implantar e invadir o peritônio, formando as lesões de endometriose, especialmente profunda e ovariana.

Fato ainda mais surpreendente não é a teoria em si, mas a sua aceitação um séculos após, apesar das modernas ferramentas que dispomos para pesquisa. Essa aceitação impede avanços no tratamento da endometriose, justificativa antecipadamente todas as falhas de tratamento, e leva milhões de mulheres a aceitarem seu “destino” (e até mesmo a se culparem) por terem endometriose.

O desafio é enorme, mas, com pesquisas científicas, o poder da comunicação, e troca de experiências, poderemos mudar o entendimento vigente sobre a endometriose, e assim o seu cenário. Vamos em frente!



Sobre o doutor Alysson Zanatta:

Graduado e com residência médica pela Universidade Estadual de Londrina, doutor Alysson Zanatta tem especializações em uroginecologia e cirurgia vaginal pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), cirurgia laparoscópica pelo Hospital Pérola Byington de São Paulo e doutorado pela Universidade de São Paulo, USP. Suas principais áreas de atuação são a pesquisa e o tratamento da endometriose, com ênfase na cirurgia de remoção máxima da doença. Seus inter­esses são voltados para iniciativas que promovem a conscientização da população sobre a doença, como forma de tratar a doença adequadamente. É diretor da Clínica Pelvi Uroginecologia e Cirurgia Ginecológica em Brasília, no Distrito Federal, onde atende mulheres com endometriose, e Professor-adjunto de Ginecologia da Universidade de Brasília (UnB). (Acesse o currículo lattes do doutor Alysson Zanatta). 

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