Nota do Tradutor: A endometriose intestinal é relativamente comum em mulheres com
endometriose, cujos sintomas e tratamento são específicos, como
muito bem sintetizado neste artigo do Dr. David Redwine. Com uma
descrição ampla e minuciosa sobre a doença, Dr. Redwine explica de
maneira acessível como tratarmos a endometriose intestinal.
A
mensagem principal é que o tratamento definitivo desse tipo de lesão
é a remoção cirúrgica, o que não significa necessariamente que
toda mulher com endometriose intestinal necessite ser operada.
Diferentemente do Dr. Redwine, contamos no Brasil com alguns
especialistas que diagnosticam sim a endometriose intestinal por
exames como a ultrassonografia transvaginal com preparo intestinal e
a ressonância magnética, nos permitindo um melhor planejamento do
tratamento.
Porém,
talvez a parte mais importante desse artigo diz respeito à
possibilidade de complicações, e às recomendações que o Dr.
Redwine faz aos médicos que porventura tenham pacientes com
complicações cirúrgicas. Estar ao lado (ao invés de se afastar),
dedicar-se à resolução da complicação, e ser um profissional
humano (acima de tudo) são necessidades fundamentais ao profissional
médico.
Por doutor David Redwine
Tradução: doutor Alysson Zanatta
Edição: Caroline Salazar
Endometriose
intestinal: sintomas, diagnóstico e tratamento:
Histórico:
As
formas da endometriose variam do sutil ao extremo. As manifestações
extremas da doença são facilmente diagnosticadas, portanto as
primeiras descrições sobre a endometriose focaram naturalmente nos
casos com a máxima distorção anatômica e com os achados clínicos
e cirúrgicos mais óbvios. Inicialmente, não existia um nome para a
endometriose porque ninguém realmente sabia a seu respeito. Os
primeiros casos que podem ter sido de endometriose severa foram
descritos como “paravaginite posterior e parametrite com
proliferação de epitélio”[1]. Os cirurgiões que encontravam a
doença avançada não sabiam se estavam olhando para uma doença
benigna ou maligna. A aparência histológica, entretanto, lembrava
um adenomioma benigno como aquele que poderia ser encontrado focal ou
difusamente no miométrio. Portanto, os primeiros relatos sobre a
endometriose, incluindo aqueles com comprometimento intestinal,
falavam da doença como um “adenomioma” para refletirem a
aparência microscópica e o aspecto de nódulo de consistência
semelhante à borracha. “Adenomioma”, “endometriose profunda”,
“endometriose severa” e “endometriose invasiva” hoje são
usados como sinônimos, e podem gerar confusão. A apresentação
mais drástica da endometriose intestinal é aquela associada ao
bloqueio do fundo de saco com envolvimento associado da vagina e do
reto.
Primeiros
Relatos de Casos
Em
1910, Stevens apresentou um caso de adenomioma do fórnice vaginal
posterior junto à Seção de Ginecologia e Obstetrícia da Sociedade
Real de Medicina [2]. Ao exame vaginal, a paciente tinha dois
pequenos nódulos rígidos de aproximadamente 6 mm de diâmetro. A
ressecção foi feita por via vaginal, com “alguma dificuldade”.
A histologia mostrou bandas de músculo liso entrelaçadas
circundando estruturas glandulares que se assemelhavam ao endométrio.
Não há menção a sintomas intestinais severos e os órgãos
pélvicos não foram avaliados.
Cuthbert
Lockyer apresentou à Sociedade Real em 1913 dois casos de
adenomiomas invadindo o fórnice vaginal posterior, um deles com
projeções “semelhantes a mamilos” [3]. Uma das pacientes foi
operada. Foi encontrado um bloqueio do fundo de saco com invasão da
parede anterior do reto por uma lesão adenomatosa benigna. A
paciente foi tratada pela remoção em bloco do útero ainda aderido
ao segmento intestinal afetado, com uma colostomia protetora. De
acordo com as ilustrações de suas características micro e
macroscópicas, esse caso seria considerado nos dias de hoje,
inequivocamente, como endometriose severa invasiva. A mucosa retal
estava intacta. Lockyer supôs que esse tumor originaria-se de restos
dos ductos de Wolff, apesar dele mudar sua opinião dois anos após.
Este deve ser um dos primeiros casos de endometriose envolvendo o
trato intestinal relatado na literatura de língua inglesa.
DeJong,
também em 1913, publicou um relato de obstrução do intestino
delgado por um adenomioma do íleo [4].
Em
1914, Griffith apresentou um caso de uma gestante com polidramnia e
um tumor entre o colo uterino e o reto, com invasão do fórnice
vaginal posterior [5]. O tumor cresceu durante a gestação, e a
biópsia demonstrou epitélio glandular circundado por alteração
decidual supostamente derivada de restos de ductos Müllerianos. O
tumor, assim como o útero, reduziram significativamente de tamanho
após 20 horas de radioterapia.
Também
em 1914, Leitch apresentou um caso de um nódulo endometriótico na
parede antimesentérica do sigmoide médio, “do tamanho de uma noz
de Barcelona”, e que foi encontrado aderido à parede posterior do
útero durante a cirurgia, aparentemente sem comprometimento do reto
[6]. Após a lise de aderências, o nódulo foi removido por
ressecção segmentar e anastomose. O exame microscópico demonstrou
claramente o que hoje seria considerado endometriose invadindo a
parede do reto até a submucosa. A área do útero sobre a qual o
sigmoide estava aderido tinha uma placa fibrótica que também foi
removida e que também revelou endometriose. Leitch propôs que o
endométrio tinha migrado através da parede uterina para o
intestino, carregando consigo o potencial de formação de metaplasia
fibromuscular circunjacente. Na discussão que se seguiu, Lockyer
refutou o seu próprio conceito prévio de origem da endometriose a
partir dos ductos de Wolff, e introduziu o conceito de heteroplasia
metaplástica epitelial do peritônio resultando de um processo
inflamatório, como uma parametrite ou “pelviperitonite”. Dr.
Leitch não se convenceu, nunca tendo visto evidências de
inflamação. Leitch também não se convenceu dos argumentos sobre a
origem embrionária da doença, afirmando que apesar das células
fetais apresentarem algum grau de totipotencialidade (nota
do tradutor:
potencial de uma célula indiferenciada transformar-se em qualquer
tipo de célula),
“as células de restos embrionários envelhecem assim como qualquer
outra célula normal, e seu potencial de desenvolvimento em outras
células acontece apenas em sua juventude”. Leitch mencionou quatro
casos de uma condição semelhante àquelas relatadas por Sitzenfrey
em 1909, porém não citou referências.
Cullen
publicou vários trabalhos entre 1914 e 1920 que claramente
ilustraram e definiram os adenomiomas do septo retovaginal com
bloqueio do fundo de saco, envolvimento da parede do reto e invasão
variável do colo do útero [7,8,9,10,11]. Seu tratamento usual era a
histerectomia (nota do tradutor: retirada do útero).
Isso era realizado pela separação do útero de seus ligamentos
laterais e remoção em bloco conjuntamente com o segmento afetado do
reto, com o útero ainda preso pelo colo uterino ao segmento
intestinal, seguido de colostomia. Eventualmente ele realizaria o
procedimento em etapas: primeiro uma colostomia, seguida da remoção
em bloco do útero e do segmento intestinal afetado. Depois de ter
realizado essa cirurgia em várias pacientes, ele concluiu que: “A
remoção de um grande adenomioma do septo retovaginal é
infinitamente mais difícil que uma histerectomia de Wertheim para o
câncer do colo do útero”. Essa afirmação permanece verdadeira
até hoje.
Em
1922, Sampson relatou um adenomioma do apêndice [12]. Sampson
postulou, incorretamente, que os adenomiomas intestinais ocorriam
devido à ruptura dos endometriomas ovarianos, com uma semeadura
secundária no intestino, e que os endometriomas ovarianos por sua
vez eram resultantes da menstruação retrógrada do endométrio que
primeiramente semeava os ovários resultando em um cisto. Não o
preocupava a existência de uma alteração leiomiomatosa ou
adenomatosa na parede intestinal que não poderia ser explicada pela
teoria da implantação do epitélio endometrial. E naquela época,
ele também não estava ciente das múltiplas, e geralmente
profundas, diferenças entre o endométrio e a endometriose, e que
não permitem que a endometriose seja considerada um autotransplante
[13].
A
endometriose do ceco é incomum e o ceco é tão largo que os
sintomas obstrutivos são raros. Isso pode explicar porque a
endometriose do ceco aparentemente não apareceu na literatura até
muito mais tarde [14].
Locais
de Acometimento Intestinal:
O
cólon sigmoide é o segmento mais afetado, seguido pelo reto, íleo,
apêndice e ceco (Tabela 1). Houve apenas um relato de
endometriose do cólon transverso, porém ilustrado de forma
esquemática [15].
Tabela
1. Locais de acometimento intestinal entre 2473 pacientes tratadas no
Programa de Tratamento da Endometriose, Hospital St. Charles, Bend,
OR, Estados Unidos
Local de envolvimento intestinal | Número de pacientes | % do total de 2473 pacientes | % de 688 pacientes intestin |
Sigmoide | 419 | 16.9 | 60.9 |
Reto Completa obstrução do fundo de saco Parcial obstrução do fundo de saco Sem obstrução | 322 245 35 42 | 13.0 9.9 1.4 1.7 | 46.8 35.6 5.1 6.1 |
Íleo | 110 | 4.4 | 16.0 |
Apêndice | 70 | 2.8 | 10.2 |
Ceco | 38 | 1.5 | 5.5 |
Total pacientes com endometriose intestinal | 688‡ | 27.8 | 100 |
Sintomas:
Os
sintomas causados pela endometriose intestinal relacionam-se à sua
localização anatômica, à profundidade de invasão das glândulas
e estroma semelhantes ao endométrio, à metaplasia fibromuscular
subjacente (“adenomioma”) , e ao grau de distorção da luz e
parede intestinais. Como muitas pacientes com endometriose intestinal
frequentemente têm lesões em múltiplas locais na pelve,
algumas vezes é difícil saber quais sintomas são causados pela
doença intestinal e quais são causados pela doença no restante da
pelve.
Algumas
mulheres com endometriose intestinal não têm sintomas. A doença
superficial, em qualquer lugar do intestino, geralmente não causa
sintomas, assim como pequenos nódulos menores que 1 cm de diâmetro.
A maior parte das lesões no apêndice é assintomática, apesar de
poder haver uma dor no quadrante inferior direito durante o período
menstrual se o apêndice estiver dilatado ou hemorrágico devido aos
efeitos da doença. A intussuscepção (nota
do tradutor:
invaginação
para dentro de si mesmo)
do
apêndice com endometriose é uma causa rara de dor abdominal,
náuseas e diarreia [17, 18, 19, 20].
A
endometriose do ceco poderá raramente causar dor no quadrante
inferior direito [21] e não causará sintomas de obstrução porque
o diâmetro do ceco é muito grande. A endometriose do íleo pode
causar cólicas em quadrante inferior direito se a sua porção
interna estiver distorcida, ou sintomas de obstrução intestinal
completa e desnutrição em casos severos. A obstrução intestinal
causada pela endometriose é quase sempre devido à obstrução do
íleo [22], ocasionalmente envolvendo a válvula ileocecal, apesar de
terem sido relatados raros casos de obstrução do retossigmoide
[23].
Dor
ou cólicas intestinais no quadrante inferior esquerdo podem ser
causadas por nódulos de endometriose no retossigmoide, devido à
obstrução mecânica parcial ou talvez pelo impedimento da
transmissão das ondas peristálticas. Os sintomas podem piorar antes
e durante as menstruações, e a obstrução completa é rara [24].
Os
nódulos de endometriose no reto ocorrem mais comumente associados à
obliteração do fundo de saco (Tabela 1) e causam dor no reto
a cada movimento peristáltico durante todo o mês, assim como dor
retal à eliminação de flatos, relação sexual, ou ao se sentar.
Ao contrário, a endometriose do fundo de saco ou ligamentos
útero-sacros, mas que não infiltra o reto, pode causar dor retal
especialmente durante a menstruação. Algumas pacientes podem ser
bastante específicas em descreverem “alguma coisa entre a vagina e
o reto”. Ocasionalmente, uma mulher pode estar tão incomodada pela
dor que elas se examinará e sentirá um nódulo doloroso. Algumas
mulheres com obliteração do fundo de saco podem se queixar de febre
baixa, particularmente durante a menstruação. Outras podem alternar
diarreia e constipação [25], com possível agravamento de algum
desses sintomas durante a menstruação. O sangramento intestinal
cíclico durante as menstruações é altamente sugestivo de
importante endometriose intestinal, porém é incomum. Com o aumento
da severidade da endometriose intestinal, há um aumento do
diagnóstico clínico de síndrome do intestino irritável.
A
perfuração intestinal associada à endometriose, algumas vezes
fatais, foi relatada em pacientes grávidas e não grávidas [26, 27,
28, 29].
Sobre o doutor Alysson Zanatta:
Graduado e com residência médica pela Universidade Estadual de Londrina, doutor Alysson Zanatta tem especializações em uroginecologia e cirurgia vaginal pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), cirurgia laparoscópica pelo Hospital Pérola Byington de São Paulo e doutorado pela Universidade de São Paulo, USP. Suas principais áreas de atuação são a pesquisa e o tratamento da endometriose, com ênfase na cirurgia de remoção máxima da doença. Seus interesses são voltados para iniciativas que promovem a conscientização da população sobre a doença, como forma de tratar a doença adequadamente. É diretor da Clínica Pelvi Uroginecologia e Cirurgia Ginecológica em Brasília, no Distrito Federal, onde atende mulheres com endometriose, e Professor-adjunto de Ginecologia da Universidade de Brasília (UnB). (Acesse o currículo lattes do doutor Alysson Zanatta).
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