Foto: A Endo e Eu |
Neste brilhante texto, o médico e cientista americano David Redwine fala da importância dos prontuários médicos para o diagnóstico e tratamento da endometriose. Claro, nada substitui uma anamnese bem detalhada e o exame clínico, mas ter o histórico da paciente é importante para fechar o diagnóstico. Muitas vezes a mulher pode ter endometriose associada à outras doenças ou outras doenças que podem ter sintomas semelhantes aos da endometriose. Principalmente se ela for mais velha. Com mais de três décadas tratando apenas endometriose, o doutor Redwine descreve os locais mais comuns e previsíveis da endometriose, os sintomas que ela pode causar e os sintomas de doenças que derivadas do útero. Eu tinha muitas, mas muitas aderências, meus órgãos estavam todos embolados dando nó dentro de mim. A dor era insuportável, e eu não conseguia descrevê-las. Quando meu médico disse que minhas terríveis dores não eram da endometriose, eu fiquei p. da vida, mas depois da minha primeira cirurgia consegui distinguir o que era dor da endometriose e o que era das aderências. O doutor Redwine também aborda a questão da dependência para aquelas que fazem tratamento com medicamentos derivados do ópio, como morfina e seus derivados. Eu tive sorte por tê-los usado por pouco tempo, mesmo assim só os usava quando precisava tentar descansar um pouco, preferia passar mais tempo com dor. Acho que fiz a coisa certa. Este é mais um texto importante não só para ser compartilhado entre as endomulheres, mas com médicos e cirurgiões, especialmente, os que tratam de endometriose. Beijo carinhoso! Caroline Salazar
Por doutor David Redwine
Tradução: doutor Alysson Zanatta
Edição: Caroline Salazar
O papel da revisão dos prontuários
médicos no diagnóstico e no tratamento da endometriose
Quando uma paciente considera vir à Bend para realizar
cirurgia (nota do tradutor: Bend
era a cidade de residência e trabalho do doutor Redwine, no estado do Oregon,
Estados Unidos), todo o processo se inicia pela revisão de seu prontuário
médico. Se você alguma vez imaginou como seria esse processo, essa é sua chance
de vê-lo através de meus olhos.
Supõe-se que a endometriose seja uma doença enigmática
que enganou os médicos por décadas. Como pode, portanto, um médico sentir-se
confortável em aconselhar uma paciente, por carta, que esteja a centenas ou
milhares de quilômetros de distância com tal doença misteriosa e sem nunca
tê-la visto? Bem, algumas vezes isso não é fácil. Eu de fato reviso
pessoalmente todo o prontuário médico, e o levo para casa nos finais de semana
para terminar durante as noites ou finais de semana. Eu tento reservar algum
tempo para lazer, mas sinto que tenho uma responsabilidade com as pacientes que
buscam minha ajuda, algumas vezes após 10 cirurgias prévias e várias tentativas
de tratamento médico.
É possível fazer uma boa revisão do prontuário de quase todas
as pacientes, porque (ao contrário do entendimento comum) a endometriose é uma
doença previsível. Posso afirmar isso agora, após ter operado milhares de
mulheres com a doença. Há muitas coisas que passam pela minha cabeça durante
uma revisão de prontuário, e eu as discutirei agora.
Idade:
Quanto maior a idade da paciente, mais provável é que
ela tenha alguma outra doença além da endometriose. Por exemplo, miomas e
adenomiose uterina são mais comuns quando as mulheres envelhecem, e então as
pacientes com mais de 35 anos podem ter algo além ou simultaneamente como causa
da dor. A cirurgia conservadora para endometriose não tratará a dor de origem
uterina.
Sintomas
inespecíficos:
Se uma paciente tem dificuldade em descrever seus
sintomas, como onde e quando eles ocorrem, então é possível que nem haja
endometriose; ou seja, pode ser que ela não seja a causa das dores. Tal
paciente pode não ter uma boa perspectiva de alívio da dor após a cirurgia.
Sintomas
específicos:
A endometriose ocorre mais comumente no fundo de saco (nota do tradutor: região pélvica
entre o útero e o intestino) e tecidos adjacentes. Qualquer fator que afete
a doença nessa região causará dor, como a penetração profunda durante a relação
sexual, exames ginecológicos e movimentos intestinais.
Se a paciente relata que tem dor aos movimentos
intestinais durante todo o mês, ela pode ter um bloqueio do fundo de saco (o
reto está preso à face posterior do colo uterino, indicando doença invasiva de
toda a região). Se ela relata dores aos movimentos intestinais apenas durante
as menstruações, pode ser que ela tenha endometriose apenas no fundo de saco e
nos ligamentos útero-sacros.
Uma dor menstrual que é relatada na parte central da
pelve com irradiação para a face anterior das coxas, além de dor lombar baixa
até o umbigo, costuma ser proveniente do útero. A remoção da endometriose pode
não tratar esse tipo de dor.
Idade de início dos sintomas: muitas pacientes com endometriose
começam a ter dor na adolescência (menstruações dolorosas), e desenvolvem
outros tipos de dor com o passar dos anos (dor na relação sexual, dores aos
movimentos intestinais, dor ao se sentar, dor fora do período menstrual, etc).
Assim, muitas pacientes que eu vejo têm um diagnóstico cirúrgico de
endometriose por volta dos 30 anos de idade. Se a paciente relata que suas
dores começaram após os 35 anos de idade, é pouco provável que a endometriose
seja a culpada pela dor.
História
de incapacidade extrema e de dependência de medicações narcóticas:
É extremamente raro que a endometriose cause
incapacidade a uma paciente ao ponto dela estar em uma cadeira de rodas,
dependente de muletas, ou ficar acamada por vários meses seguidos sem
trabalhar. É pouco provável que tal incapacitação seja causada pela
endometriose e que a cirurgia melhore essa situação.
A endometriose é uma condição dolorosa que eventualmente
requer medicações narcóticas (nota do
tradutor: medicações opioides como morfina ou seus derivados) para o
tratamento, e há, portanto algum potencial para desenvolvimento de dependência,
tolerância ou vício. Isso significa que essa paciente irá necessitar de mais
analgésicos após a cirurgia, mas pode ser também que ela seja dependente e peça
para ficar mais tempo no hospital para receber medicações intravenosas ou
intramusculares e ainda necessitar de desmame de medicação quando ela retornar
para casa.
Um dos sintomas da abstinência dos medicamentos pode ser
a dor abdominal, a qual pode às vezes se sobrepor aos sintomas da endometriose.
Tais pacientes têm mais trabalho a fazer do que apenas a recuperação da
cirurgia.
Histórico
de gestações:
Apesar da gestação não fazer a endometriose desaparecer,
a endometriose pode ser uma causa de infertilidade. Portanto se uma mulher
esteve grávidas várias vezes, é menos provável que ela tenha endometriose
severa.
Resposta
a tratamentos medicamentosos:
O tratamento medicamentoso não erradica a endometriose.
O melhor que ele pode fazer é melhorar temporariamente a dor enquanto a função
ovariana da mulher estiver suprimida. Uma vez que o tratamento é interrompido,
os ovários acordam em algumas semanas e a dor recorre, porque sua causa ainda
está presente.
A melhora da dor com medicações não significa
necessariamente que a paciente tenha endometriose porque várias outras causas
de dor podem melhorar por um tempo com medicações, como miomas, adenomiose, dor
da ovulação e a dismenorreia (nota do
tradutor: cólica de origem uterina sem origem aparente).
Achados
em cirurgias prévias:
Os relatos de cirurgias prévias podem ajudar bastante.
Algumas vezes a endometriose é óbvia e “clássica” em sua descrição e eu posso
ter clara certeza de que está presente mesmo que não tenha sido realizada
nenhuma biópsia. Algumas vezes o bloqueio do fundo de saco é descrito como
“aderências severas atrás do colo do útero” ou “o intestino estava bastante
aderido ao útero”.
Tais relatos carecem de significado. A paciente tem mais
do que apenas aderências – ela tem endometriose profunda dos ligamentos
útero-sacros, fundo de saco, região posterior do colo uterino e geralmente na
parede anterior do reto.
Resposta
clínica às cirurgias:
A cauterização de focos e o tratamento com laser podem
deixar doença para trás, especialmente se a doença é profunda abaixo da
superfície. Eu quase sempre encontro endometriose nessas pacientes, e sou
otimista quanto ao seu prognóstico. Mas se a paciente passou por uma boa
cirurgia de remoção, eu geralmente não encontro endometriose ou encontro muito
pouco, já que a remoção pode curar a doença. A dor que persiste após uma
cirurgia de remoção extensa da doença é normalmente causada por outros motivos.
Exames
ginecológicos prévios:
Na maioria das pacientes é fácil acessar o fundo de saco
durante o exame ginecológico. A região costuma ser dolorosa mesmo se a paciente
estiver tomando remédios. Quando eu leio que um exame ginecológico anterior
demonstrou dor ou nódulos dolorosos (nódulos indicando endometriose profunda),
é altamente provável que haja endometriose e que ela seja a responsável pela
dor.
Se o exame reproduz a dor da paciente, a perspectiva de
alívio da dor após a cirurgia é alta. Se o exame não reproduz a dor, significa
que o (a) médico (a) não atingiu a região correta (dedos curtos?) ou que talvez
nem haja endometriose. Tais pacientes têm poucas chances de melhora após a
cirurgia.
Coisas
que não ajudam:
Exames de Papanicolaou (citologias oncóticas), exames
laboratoriais normais, registro de medicações utilizadas no hospital em
cirurgias prévias, registros obstétricos.
Coisas
que ajudam:
No mínimo, é necessária uma história clínica detalhada
da paciente, mas registros de cirurgias prévios também são sempre úteis.
Algumas pacientes passaram por tantas cirurgias que elas não conseguem
localizar todos os relatórios, especialmente daquelas mais antigas. Os relatórios
cirúrgicos recentes são mais úteis.
Resumindo:
A revisão dos prontuários é uma arte, mas em minha
experiência ela pode fornecer uma quantidade enorme de informações com alto
grau de acerto, sendo uma ferramenta indispensável na prática clínica. Você nem
sempre é preciso, mas um exame ginecológico em uma paciente antes da cirurgia
pode preencher várias lacunas e responder várias perguntas.
A avaliação final deverá sempre aguardar a recuperação
completa da paciente, já que a dor que é causada pela endometriose terá
desaparecido após a sua remoção. A dor persistente significa que ela era
causada por algum outro fator, e não pela persistência de “focos microscópicos”
ou doença que está escondida em algum outro local e que não possa ser
encontrada.
Nota
do Tradutor:
Nesse texto, doutor
Redwine faz uma distinção entre os sinais e os sintomas que sugerem endometriose
daqueles que possivelmente não são causados pela doença. O assunto é muito
importante, pois, ao formarmos um raciocínio clínico sobre a real causa das
dores de uma mulher (seja endometriose ou não), teremos mais chances de
acertarmos em nossas decisões.
Assim, o ponto mais
importante na avaliação da mulher é estabelecermos uma relação de causa e
efeito entre sua doença e seus sintomas. Em alguns casos encontraremos mulheres
que de fato têm endometriose, mas cuja doença não explicaria suas queixas. Ter
o entendimento e o “feeling” dos sintomas comuns da endometriose é fundamental
na principal decisão a ser tomada: operar ou não operar?
Há poucas coisas tão
frustrantes quanto passar por uma cirurgia e não ter melhora. A maior frustrada
é a própria mulher, mas o médico também o é. Há um ditado em Medicina que diz
que “mais importante do que saber operar, é saber quando não operar”. Isso é
nítido no caso da endometriose. O grau de satisfação de ambos paciente e médico
dependerá de uma correta indicação cirúrgica e de uma remoção máxima e efetiva
da doença. E a indicação correta depende não mais do que uma boa conversa
(impossível em consultas de 15 minutos), um exame ginecológico que identifique
a dor e um exame de imagem feito por especialista. Fechando-se o raciocínio
clínico, a cirurgia terá alta chance de sucesso. Não se fechando, pode ser que
paciente fique ainda mais satisfeita por não passar por cirurgia desnecessária.
Sobre o doutor Alysson Zanatta:
Graduado e com residência médica pela Universidade Estadual de Londrina, doutor Alysson Zanatta tem especializações em uroginecologia e cirurgia vaginal pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), cirurgia laparoscópica pelo Hospital Pérola Byington de São Paulo e doutorado pela Universidade de São Paulo, USP. Suas principais áreas de atuação são a pesquisa e o tratamento da endometriose, com ênfase na cirurgia de remoção máxima da doença. Seus interesses são voltados para iniciativas que promovem a conscientização da população sobre a doença, como forma de tratar a doença adequadamente. É diretor da Clínica Pelvi Uroginecologia e Cirurgia Ginecológica em Brasília, no Distrito Federal, onde atende mulheres com endometriose, e ex-professor-adjunto de Ginecologia da Universidade de Brasília (UnB). (Acesse o currículo lattes do doutor Alysson Zanatta).
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