terça-feira, 13 de junho de 2017

DAVID REDWINE: A IMPORTÂNCIA DA REVISÃO DOS PRONTUÁRIOS MÉDICOS NA ENDOMETRIOSE!!

Foto: A Endo e Eu


Neste brilhante texto, o médico e cientista americano David Redwine fala da importância dos prontuários médicos para o diagnóstico e tratamento da endometriose. Claro, nada substitui uma anamnese bem detalhada e o exame clínico, mas ter o histórico da paciente é importante para fechar o diagnóstico. Muitas vezes a mulher pode ter endometriose associada à outras doenças ou outras doenças que podem ter sintomas semelhantes aos da endometriose. Principalmente se ela for mais velha. Com mais de três décadas tratando apenas endometriose, o doutor Redwine descreve os locais mais comuns e previsíveis da endometriose, os sintomas que ela pode causar e os sintomas de doenças que derivadas do útero. Eu tinha muitas, mas muitas aderências, meus órgãos estavam todos embolados dando nó dentro de mim. A dor era insuportável, e eu não conseguia descrevê-las. Quando meu médico disse que minhas terríveis dores não eram da endometriose, eu fiquei p. da vida, mas depois da minha primeira cirurgia consegui distinguir o que era dor da endometriose e o que era das aderências. O doutor Redwine também aborda a questão da dependência para aquelas que fazem tratamento com medicamentos derivados do ópio, como morfina e seus derivados. Eu tive sorte por tê-los usado por pouco tempo, mesmo assim só os usava quando precisava tentar descansar um pouco, preferia passar mais tempo com dor. Acho que fiz a coisa certa. Este é mais um texto importante não só para ser compartilhado entre as endomulheres, mas com médicos e cirurgiões, especialmente, os que tratam de endometriose. Beijo carinhoso! Caroline Salazar 


Por doutor David Redwine
Tradução: doutor Alysson Zanatta
Edição: Caroline Salazar



O papel da revisão dos prontuários médicos no diagnóstico e no tratamento da endometriose

Quando uma paciente considera vir à Bend para realizar cirurgia (nota do tradutor: Bend era a cidade de residência e trabalho do doutor Redwine, no estado do Oregon, Estados Unidos), todo o processo se inicia pela revisão de seu prontuário médico. Se você alguma vez imaginou como seria esse processo, essa é sua chance de vê-lo através de meus olhos.

Supõe-se que a endometriose seja uma doença enigmática que enganou os médicos por décadas. Como pode, portanto, um médico sentir-se confortável em aconselhar uma paciente, por carta, que esteja a centenas ou milhares de quilômetros de distância com tal doença misteriosa e sem nunca tê-la visto? Bem, algumas vezes isso não é fácil. Eu de fato reviso pessoalmente todo o prontuário médico, e o levo para casa nos finais de semana para terminar durante as noites ou finais de semana. Eu tento reservar algum tempo para lazer, mas sinto que tenho uma responsabilidade com as pacientes que buscam minha ajuda, algumas vezes após 10 cirurgias prévias e várias tentativas de tratamento médico.

É possível fazer uma boa revisão do prontuário de quase todas as pacientes, porque (ao contrário do entendimento comum) a endometriose é uma doença previsível. Posso afirmar isso agora, após ter operado milhares de mulheres com a doença. Há muitas coisas que passam pela minha cabeça durante uma revisão de prontuário, e eu as discutirei agora.

Idade:

Quanto maior a idade da paciente, mais provável é que ela tenha alguma outra doença além da endometriose. Por exemplo, miomas e adenomiose uterina são mais comuns quando as mulheres envelhecem, e então as pacientes com mais de 35 anos podem ter algo além ou simultaneamente como causa da dor. A cirurgia conservadora para endometriose não tratará a dor de origem uterina.

Sintomas inespecíficos:

Se uma paciente tem dificuldade em descrever seus sintomas, como onde e quando eles ocorrem, então é possível que nem haja endometriose; ou seja, pode ser que ela não seja a causa das dores. Tal paciente pode não ter uma boa perspectiva de alívio da dor após a cirurgia.

Sintomas específicos:

A endometriose ocorre mais comumente no fundo de saco (nota do tradutor: região pélvica entre o útero e o intestino) e tecidos adjacentes. Qualquer fator que afete a doença nessa região causará dor, como a penetração profunda durante a relação sexual, exames ginecológicos e movimentos intestinais.

Se a paciente relata que tem dor aos movimentos intestinais durante todo o mês, ela pode ter um bloqueio do fundo de saco (o reto está preso à face posterior do colo uterino, indicando doença invasiva de toda a região). Se ela relata dores aos movimentos intestinais apenas durante as menstruações, pode ser que ela tenha endometriose apenas no fundo de saco e nos ligamentos útero-sacros.

Uma dor menstrual que é relatada na parte central da pelve com irradiação para a face anterior das coxas, além de dor lombar baixa até o umbigo, costuma ser proveniente do útero. A remoção da endometriose pode não tratar esse tipo de dor.

Idade de início dos sintomas: muitas pacientes com endometriose começam a ter dor na adolescência (menstruações dolorosas), e desenvolvem outros tipos de dor com o passar dos anos (dor na relação sexual, dores aos movimentos intestinais, dor ao se sentar, dor fora do período menstrual, etc). Assim, muitas pacientes que eu vejo têm um diagnóstico cirúrgico de endometriose por volta dos 30 anos de idade. Se a paciente relata que suas dores começaram após os 35 anos de idade, é pouco provável que a endometriose seja a culpada pela dor.

História de incapacidade extrema e de dependência de medicações narcóticas:

É extremamente raro que a endometriose cause incapacidade a uma paciente ao ponto dela estar em uma cadeira de rodas, dependente de muletas, ou ficar acamada por vários meses seguidos sem trabalhar. É pouco provável que tal incapacitação seja causada pela endometriose e que a cirurgia melhore essa situação.

A endometriose é uma condição dolorosa que eventualmente requer medicações narcóticas (nota do tradutor: medicações opioides como morfina ou seus derivados) para o tratamento, e há, portanto algum potencial para desenvolvimento de dependência, tolerância ou vício. Isso significa que essa paciente irá necessitar de mais analgésicos após a cirurgia, mas pode ser também que ela seja dependente e peça para ficar mais tempo no hospital para receber medicações intravenosas ou intramusculares e ainda necessitar de desmame de medicação quando ela retornar para casa.

Um dos sintomas da abstinência dos medicamentos pode ser a dor abdominal, a qual pode às vezes se sobrepor aos sintomas da endometriose. Tais pacientes têm mais trabalho a fazer do que apenas a recuperação da cirurgia.

Histórico de gestações:

Apesar da gestação não fazer a endometriose desaparecer, a endometriose pode ser uma causa de infertilidade. Portanto se uma mulher esteve grávidas várias vezes, é menos provável que ela tenha endometriose severa.

Resposta a tratamentos medicamentosos:

O tratamento medicamentoso não erradica a endometriose. O melhor que ele pode fazer é melhorar temporariamente a dor enquanto a função ovariana da mulher estiver suprimida. Uma vez que o tratamento é interrompido, os ovários acordam em algumas semanas e a dor recorre, porque sua causa ainda está presente.

A melhora da dor com medicações não significa necessariamente que a paciente tenha endometriose porque várias outras causas de dor podem melhorar por um tempo com medicações, como miomas, adenomiose, dor da ovulação e a dismenorreia (nota do tradutor: cólica de origem uterina sem origem aparente).

Achados em cirurgias prévias:

Os relatos de cirurgias prévias podem ajudar bastante. Algumas vezes a endometriose é óbvia e “clássica” em sua descrição e eu posso ter clara certeza de que está presente mesmo que não tenha sido realizada nenhuma biópsia. Algumas vezes o bloqueio do fundo de saco é descrito como “aderências severas atrás do colo do útero” ou “o intestino estava bastante aderido ao útero”.

Tais relatos carecem de significado. A paciente tem mais do que apenas aderências – ela tem endometriose profunda dos ligamentos útero-sacros, fundo de saco, região posterior do colo uterino e geralmente na parede anterior do reto.

Resposta clínica às cirurgias:

A cauterização de focos e o tratamento com laser podem deixar doença para trás, especialmente se a doença é profunda abaixo da superfície. Eu quase sempre encontro endometriose nessas pacientes, e sou otimista quanto ao seu prognóstico. Mas se a paciente passou por uma boa cirurgia de remoção, eu geralmente não encontro endometriose ou encontro muito pouco, já que a remoção pode curar a doença. A dor que persiste após uma cirurgia de remoção extensa da doença é normalmente causada por outros motivos.

Exames ginecológicos prévios:

Na maioria das pacientes é fácil acessar o fundo de saco durante o exame ginecológico. A região costuma ser dolorosa mesmo se a paciente estiver tomando remédios. Quando eu leio que um exame ginecológico anterior demonstrou dor ou nódulos dolorosos (nódulos indicando endometriose profunda), é altamente provável que haja endometriose e que ela seja a responsável pela dor.

Se o exame reproduz a dor da paciente, a perspectiva de alívio da dor após a cirurgia é alta. Se o exame não reproduz a dor, significa que o (a) médico (a) não atingiu a região correta (dedos curtos?) ou que talvez nem haja endometriose. Tais pacientes têm poucas chances de melhora após a cirurgia.

Coisas que não ajudam:

Exames de Papanicolaou (citologias oncóticas), exames laboratoriais normais, registro de medicações utilizadas no hospital em cirurgias prévias, registros obstétricos.

Coisas que ajudam:

No mínimo, é necessária uma história clínica detalhada da paciente, mas registros de cirurgias prévios também são sempre úteis. Algumas pacientes passaram por tantas cirurgias que elas não conseguem localizar todos os relatórios, especialmente daquelas mais antigas. Os relatórios cirúrgicos recentes são mais úteis.

Resumindo:

A revisão dos prontuários é uma arte, mas em minha experiência ela pode fornecer uma quantidade enorme de informações com alto grau de acerto, sendo uma ferramenta indispensável na prática clínica. Você nem sempre é preciso, mas um exame ginecológico em uma paciente antes da cirurgia pode preencher várias lacunas e responder várias perguntas.

A avaliação final deverá sempre aguardar a recuperação completa da paciente, já que a dor que é causada pela endometriose terá desaparecido após a sua remoção. A dor persistente significa que ela era causada por algum outro fator, e não pela persistência de “focos microscópicos” ou doença que está escondida em algum outro local e que não possa ser encontrada.

Nota do Tradutor:

Nesse texto, doutor Redwine faz uma distinção entre os sinais e os sintomas que sugerem endometriose daqueles que possivelmente não são causados pela doença. O assunto é muito importante, pois, ao formarmos um raciocínio clínico sobre a real causa das dores de uma mulher (seja endometriose ou não), teremos mais chances de acertarmos em nossas decisões.

Assim, o ponto mais importante na avaliação da mulher é estabelecermos uma relação de causa e efeito entre sua doença e seus sintomas. Em alguns casos encontraremos mulheres que de fato têm endometriose, mas cuja doença não explicaria suas queixas. Ter o entendimento e o “feeling” dos sintomas comuns da endometriose é fundamental na principal decisão a ser tomada: operar ou não operar?

Há poucas coisas tão frustrantes quanto passar por uma cirurgia e não ter melhora. A maior frustrada é a própria mulher, mas o médico também o é. Há um ditado em Medicina que diz que “mais importante do que saber operar, é saber quando não operar”. Isso é nítido no caso da endometriose. O grau de satisfação de ambos paciente e médico dependerá de uma correta indicação cirúrgica e de uma remoção máxima e efetiva da doença. E a indicação correta depende não mais do que uma boa conversa (impossível em consultas de 15 minutos), um exame ginecológico que identifique a dor e um exame de imagem feito por especialista. Fechando-se o raciocínio clínico, a cirurgia terá alta chance de sucesso. Não se fechando, pode ser que paciente fique ainda mais satisfeita por não passar por cirurgia desnecessária. 


Sobre o doutor Alysson Zanatta:
Graduado e com residência médica pela Universidade Estadual de Londrina, doutor Alysson Zanatta tem especializações em uroginecologia e cirurgia vaginal pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), cirurgia laparoscópica pelo Hospital Pérola Byington de São Paulo e doutorado pela Universidade de São Paulo, USP. Suas principais áreas de atuação são a pesquisa e o tratamento da endometriose, com ênfase na cirurgia de remoção máxima da doença. Seus inter­esses são voltados para iniciativas que promovem a conscientização da população sobre a doença, como forma de tratar a doença adequadamente. É diretor da Clínica Pelvi Uroginecologia e Cirurgia Ginecológica em Brasília, no Distrito Federal, onde atende mulheres com endometriose, e ex-professor-adjunto de Ginecologia da Universidade de Brasília (UnB). (Acesse o currículo lattes do doutor Alysson Zanatta). 

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