Eu e o médico e cientista americano David Redwine em sua visita ao Brasil em 2014 |
Já contamos histórias de mulheres que tiveram endometriose de cicatriz, como a da capixaba Danielle Balbino e a da portuguesa Sara Ferreira, mas nunca abordamos em texto a endometriose de pele. O médico e cientista americano David Redwine discorre o tema de maneira precisa e muito bem explicada. Como surge a endometriose cutânea, que pode ser a de umbigo e a de cicatriz, que não necessariamente só ocorre quando a mulher faz alguma cirurgia. Um texto de perguntas e respostas bem objetivas que aborda as principais dúvidas sobre a endometriose de pele, tais como os sintomas, o tratamento, como surge este tipo de tratamento, por que uma mulher que nunca operou também pode ter endometriose de umbigo? Mais um texto exclusivo do A Endometriose e Eu. Beijo carinhoso! Caroline Salazar
Entrevista
em inglês: Libby Hopton
Tradução: doutor Alysson Zanatta
Edição: Caroline Salazar
Tradução: doutor Alysson Zanatta
Edição: Caroline Salazar
Perguntas e respostas sobre endometriose cutânea:
Libby
Hopton: Segundo
meu entendimento, a endometriose cutânea (nota
do tradutor:
de pele)
é mais comumente encontrada em cicatrizes de cirurgias prévias.
Antes de considerar a endometriose cutânea em maior detalhe, há
também casos de endometriose cutânea na ausência de uma incisão /
cicatriz, e caso haja, onde essas lesões ocorrem com maior
frequência?
David
Redwine:
Segundo meu conhecimento, além dos casos de endometriose espontânea
envolvendo o umbigo, a única ocasião de endometriose cutânea não
associada à uma cicatriz cirúrgica foi um caso de endometriose na
vulva em uma nuligesta (nota
do tradutor:
que nunca gestou).
(Healy JJ. Bilateral endometriosis of the vulva. Am J Obstet Gynecol
1956; 72:1361-3)
LH:
No
exemplo da endometriose umbilical, costuma haver sempre uma incisão
cirúrgica prévia no umbigo antes do surgimento da doença ou essa
tende a ser espontânea neste local?
DR:
A endometriose umbilical tende a ser espontânea e eu suponho que a
maioria dos casos de endometriose umbilical seja espontânea. Há
relatos esporádicos de endometriose umbilical que surgiram após
histerectomia (nota
do tradutor:
cirurgia de retirada do útero) laparoscópica
com uso de trocater umbilical. Nesses dois casos, fragmentos de
endométrio e miométrio foram removidos através do umbigo
desprotegido (o trocater foi removido e o tecido foi puxado através
do umbigo). (Konninckx PR et al. Umbilical endoemtriosis after
unprotected removal of uterine pieces through the umbilicus. J Am
Assoc Gynecol Laparosc 2000; 7:227-32.)
LH:
Quais
são os sintomas da endometriose cutânea e em qual idade essa forma
da doença geralmente ocorre? Ela costuma piorar com o tempo? A
endometriose cutânea está associada a lesões em outros locais ou
ela pode se apresentar isoladamente, como o único local da doença?
DR:
A
endometriose cutânea se apresenta como um nódulo pequeno, doloroso,
que pode crescer lentamente. Muitas lesões parecem atingir um certo
tamanho e param de crescer. Inchaço e dor local cíclicas são os
sintomas mais comuns da endometriose cutânea. O umbigo é a parte
mais fina da parede abdominal, talvez alguns centímetros de
espessura apenas, mesmo nas pessoas obesas. Indo de fora para dentro,
as camadas do umbigo são: epiderme, derme, fascia, gordura
retroperitoneal, e peritônio. Como a espessura da parede abdominal
na cicatriz umbilical é tão fina, a endometriose umbilical pode
também estar associada a um sangramento cíclico. A endometriose de
uma cicatriz cirúrgica (a forma mais comum de endometriose cutânea)
geralmente não afeta a derme ou epiderme (as camadas da pele) como
acontece com a endometriose do umbigo, portanto o sangramento externo
será raro, se é que ocorrerá alguma vez. A endometriose da
cicatriz cirúrgica acomete primariamente a fáscia, com alguma
fibrose da gordura subcutânea sobrejacente à fáscia. A
endometriose de cicatriz cirúrgica raramente tem alguma conexão
mais profunda em direção ao peritônio ou cavidade endometrial.
LH:
No
caso da endometriose que surge nas cicatrizes, quais são os
possíveis mecanismos causais (i.e, tecido endometrial transplantado
e “preso” na incisão e/ou tecido saudável que se transforma em
endometriose como resultado de substâncias químicas liberadas
durante o processo de cicatrização)?
DR:
As
duas possíveis causas da endometriose de cicatriz cirúrgica são o
autotransplante (inoculação diretamente na cicatriz de tecido
endometrial originado do útero) e metaplasia (nota
do tradutor:
transformação de uma célula em outro tipo de célula) relacionada
à liberação de substâncias químicas liberadas pelo corpo durante
a cicatrização, incluindo vários fatores de crescimento. Um fator
que fala contra o autotransplante é que a histologia da endometriose
de cicatriz não é aquela típica de um tecido endometrial bastante
diferenciado, como seria a do tecido endometrial original do útero.
Seria de se esperar que o tecido autotransplantado permanecesse mais
idêntico ao tecido de origem uterina. Outro fator contra o
autotransplante é a propensão da endometriose de cicatriz envolver
primariamente a fascia – se a inoculação de toda uma cicatriz
ocorresse, seria de se esperar que a endometriose de cicatriz
envolvesse mais uniformemente todas as camadas desde a pele até o
peritônio, e não apenas primariamente uma das camadas. É claro e
evidente que cada célula no corpo tem o potencial genético de se
transformar em outro tipo de célula, dado o estímulo adequado,
portanto cada célula no corpo pode ser uma “célula-tronco”.
Segundo o conceito da Mülleriose, fragmentos de tecido podem ser
distribuídos em locais do corpo que já contêm endometriose, ou que
possuem uma capacidade aumentada de passar por metaplasia e se
transformarem em endometriose. Na pelve, esses fragmentos de tecido
são mais comumente encontrados na pelve posterior mas podem ocorrer
em qualquer local da pelve, intestino, ou bexiga. Entretanto,
teoricamente esses fragmentos também poderiam ser encontrados em
qualquer local do corpo, apesar de que com uma frequência
inversamente proporcional à distância ao fundo de saco (pelve
posterior). Por esse conceito, a parece abdominal poderia conter
esses fragmentos de tecido, distribuídos mais comumente na parede
abdominal inferior próximo à pelve. As artérias e veias umbilicais
passam pelo umbigo do feto. No feto feminino essas estruturas
originam-se das artérias e veias uterinas. Portanto, o umbigo tem
uma conexão direta e compartilhada com a pelve que pode se estender
à formação da parede abdominal e que pode portanto estar associada
com a endometriose de cicatriz que envolve o umbigo. Esse aspecto
ontológico (nota
do tradutor:
relacionado à formação de órgãos)
do umbigo pode aumentar a possibilidade de que um fragmento de tecido
Mülleriano tenha sido depositado no umbigo com maior frequência em
relação a outros locais na parede umbilical. Se fragmentos de
tecido Mülleriano fossem depositados no umbigo, o umbigo poderia
então apresentar endometriose espontânea (se a endometriose tivesse
se originado durante a embriogênese), ou endometriose de cicatriz
relacionada à laparoscopia devido à metaplasia de tal fragmento
tecidual estimulada por fatores de crescimento durante o processo de
cicatrização. Tal fragmento de tecido seria mais propenso a
desenvolver endometriose por metaplasia relacionada à cicatrização
de uma ou repetidas incisões umbilicais usadas para os trocateres de
laparoscopia do que uma outra incisão de trocater onde não houvesse
fragmentos de tecido acometidos pela Mülleriose.
LH:
Há
certos tipos de cicatrizes associadas a determinado tipo de doença
mais frequentes do que outras?
DR:
A
endometriose de cicatriz foi relatada em incisões de laparotomia
transversas, verticais, em punções de trocater no umbigo, em locais
de amniocentese (nota
do tradutor:
punção para coleta de líquido amniótico durante a gravidez),
e episiotomias (nota
do tradutor:
incisão no períneo para facilitação do parto vaginal). A
endometriose de cicatriz de incisões de laparotomia parece seguir o
seguinte padrão – em incisões transversas, a endometriose é
pouco encontrada na linha média, e sim mais em um dos lados – o
direito sendo o mais comum. A predileção da endometriose de
cicatriz pelo lado direito da parede abdominal reproduz a predileção
da endometriose inguinal por esse mesmo lado, sugerindo que a parede
abdominal direita contém mais comumente fragmentos de tecido
Mülleriano do que o lado esquerdo. Com incisões verticais, a
endometriose é encontrada mais próxima à sínfise púbica do que
do umbigo, sugerindo que os fragmentos de tecido são mais comuns em
locais próximos à pelve. A maioria das lesões de endometriose de
cicatriz de laparotomia é representada por um único nódulo.
LH:
No
caso da endometriose de cicatriz, seria o tecido transplantado uma
confirmação da teoria implantacional e suportando o conceito de que
o endométrio nativo pode implantar-se e invadir outros locais fora
do útero? A endometriose de cicatriz é um modelo para a teoria de
Sampson da menstruação retrógrada como a origem da endometriose?
DR:
A
teoria de Sampson sobre a origem da endometriose fala sobre o
endométrio menstrual implantando-se sobre superfícies peritoneais.
Muitos casos de endometriose de cicatriz não estão relacionados com
endométrio menstrual descamado, mas conotam a possibilidade que o
endométrio viável tenha sido inoculado em uma cicatriz fresca e
receptiva. Isso sugeriria que a endometriose de cicatriz não seria
um modelo para explicar a teoria de Sampson. Um outro ponto foi
mencionado acima – a endometriose de cicatriz de laparotomia
manifesta-se como um único nódulo na maioria dos casos. Eu nunca
encontrei um caso onde houvesse um segundo nódulo. Se ocorresse a
inoculação ao longo de uma cicatriz de 9 a 10 cm, seria de se
esperar que algumas pacientes tivessem mais de um nódulo. Portanto a
endometriose de cicatriz não pode ser aceita como um bom modelo para
exemplificar a teoria de Sampson. Punções de laparotomia ou de
amniocentese são pontos únicos onde esperar-se-ia o desenvolvimento
de um único nódulo. Se tal nódulo único da endometriose de
cicatriz fosse observado sem o conhecimento do padrão de
distribuição da endometriose de cicatrizes de laparotomia, seria
fácil concluir rapidamente que houve inoculação local pelo
endométrio. Em resumo, as cicatrizes de laparotomia representam um
“laboratório” melhor para o estudo das lesões de endometriose
de cicatriz do que aquelas de locais de punção. Não se sabe se
existe a possibilidade de se estabelecer endometriose em uma incisão
cirúrgica a partir de uma lesão de endometriose pélvica.
LH:
Quando
existe a endometriose de cicatriz, ela tende a acometer apenas a
superfície externa da pele ou ela pode penetrar toda a espessura da
parede abdominal e mesmo formar um trajeto de fora para dentro ou
vice-versa?
A neurocientista inglesa Libby Hopton e eu em 2014 |
DR:
Como
respondido acima, a doença costuma envolver apenas a fáscia.
LH:
Qual
o melhor tratamento para a endometriose cutânea?
DR:
Minha
experiência pessoal e a literatura publicada tornam claro que a
excisão cirúrgica com margens livres é curativa na grande maioria
dos casos.
LH:
Ela
pode ser tratada diretamente por cirurgia?
DR:
Sim,
é fácil de se operar na parede abdominal. Geralmente a cirurgia não
se estende à cavidade abdominal. Quando isso acontece, a área
geralmente é pequena comparada às incisões de laparotomia.
LH:
Existem
alguns tipos mais facilmente tratados do que outros?
DR:
Todas
são igualmente fáceis de serem tratadas desde que não envolvam
estruturas vitais. O reparo cosmético do umbigo é um pouco mais
difícil do que o simples fechamento da pele sobre um nódulo de
laparotomia.
LH:
Se
a endometriose de cicatriz pode formar-se puramente como resultado do
processo de cicatrização (tecido que passa por metaplasia e se
transforma em endometriose sob a influência do ambiente celular
durante a cicatrização), o que fazer para evitar que este mesmo
processo recorra após a ressecção da área doente e com a formação
de um novo tecido de cicatrização?
DR:
O
fragmento de tecido depositado no período embrionário foi agora
removido. Tais fragmentos não são necessariamente feixes de tecidos
contínuos que se pareçam com avenidas, apesar de alguns poderem
ser. Alguns fragmentos podem ser depositados aqui ou ali ao longo de
uma região previamente estabelecida.
LH:
Quais
medidas podem ser tomadas durante as cirurgias para reduzirem o risco
de endometriose nos locais cirúrgicos?
DR:
Se
a endometriose de cicatriz for causada pela estimulação de
fragmentos teciduais embriológicos, não haveria nenhuma prevenção
óbvia, já que o processo de cicatrização teria que ser
interrompido. Dada a raridade da endometriose de cicatriz – muitas
mulheres submetidas a laparotomias ou laparoscopias jamais a
desenvolverão – não faria sentido você tentar interferir no
processo de cicatrização de 100% das pacientes para prevenir a
endometriose de cicatriz em < 0,5% delas. Se a endometriose de
cicatriz fosse causada por inoculação da cicatriz cirúrgica, então
talvez colocando-se uma barreira sobre cada camada da parede
abdominal (especialmente a fascia) antes de se adentrar o peritônio
talvez fizesse sentido. Mas surge a questão novamente – você
assumiria os esforços e os custos em 100% das pacientes para
proteger < 0,5% de um problema benigno, facilmente tratado? Eu
tenho certeza que alguma indústria de produtos médicos responderia
que sim.
LH:
A
endometriose pode se formar (por metaplasia) ou tornar-se parte (por
excisão cirúrgica incompleta) na cúpula
vaginal
(nota
do tradutor:
porção superior da vagina onde o útero se inseria, e que torna-se
uma cicatriz após a sua remoção) após
uma histerectomia? Caso positivo, quais seriam os sintomas (dor,
sangramento cíclico)?
DR:
O tecido da parede vaginal é um epitélio escamoso
estratificado, exatamente igual à pele. A diferença é que a parede
vaginal não tem folículos pilosos ou glândulas sudoríparas.
Portanto, todo comentário feito a respeito da endometriose de
cicatriz aplica-se à parede vaginal. A parede vaginal posterior
atrás do colo uterino é o local mais comum de ocorrência da
endometriose de vagina, geralmente associada a uma lesão no reto com
obliteração do fundo de saco de Douglas, ou a um nódulo no
ligamento útero-sacro. Caso o fórnice posterior da vagina normal
não tenha sido removido juntamente com um nódulo no reto ou
ligamento útero-sacro, há uma chance de que este local ainda possa
formar uma lesão de endometriose no futuro, já que fragmentos de
tecidos embriológicos permaneceram no local e podem se manifestar
como endometriose no futuro. O Professor Donnez, na Bélgica,
observou isso e recomenda que o fórnice vaginal posterior seja
removido rotineiramente quando houver um nódulo adjacente para a
diminuição da recorrência pós-operatória (o que parece ser por
um processo de metaplasia). Voltando à reposta específica da
questão, o meu palpite é que a maioria das lesões de endometriose
de cúpula vaginal é relacionada a nódulos adjacentes que não
foram removidos e que a endometriose foi simplesmente incorporada à
cúpula vaginal durante seu fechamento cirúrgico.
Nota
do Tradutor: Em
mais um texto claro e autoexplicativo, Dr. Redwine responde à Libby
Hopton, neurocientista e dedicada pesquisadora da doença, perguntas
sobre a endometriose de cicatriz, especialmente a endometriose de
umbigo e a endometriose em incisões cirúrgicas.
O
ponto mais interessante dessa entrevista são os argumentos expostos
pelo Dr. Redwine que contrariam a teoria de que a endometriose de
cicatriz tenha sido causada por inoculação cirúrgica direta,
proposta pelos expoentes da teoria de Sampson, ou teoria da
menstruação retrógrada. Dr. Redwine explica que esse tipo de
endometriose possivelmente se deva à uma estimulação de tecidos
embrionários que foram depositados naqueles locais, durante o
processo de cicatrização. Isso explica os casos de endometriose de
umbigo que surgem em mulheres que jamais foram operadas.
Pessoalmente, tive a oportunidade de tratar duas mulheres com
endometriose de umbigo, e ambas jamais tinham sido operadas.
Entender
a causa e os mecanismos da endometriose (a de cicatriz, ou as outras
formas da doença ) significa escolhas acertadas, e maiores chances
de sucesso no tratamento.
Sobre o doutor Alysson Zanatta:
Graduado e com residência médica pela Universidade Estadual de Londrina, doutor Alysson Zanatta tem especializações em uroginecologia e cirurgia vaginal pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), cirurgia laparoscópica pelo Hospital Pérola Byington de São Paulo e doutorado pela Universidade de São Paulo, USP. Suas principais áreas de atuação são a pesquisa e o tratamento da endometriose, com ênfase na cirurgia de remoção máxima da doença. Seus interesses são voltados para iniciativas que promovem a conscientização da população sobre a doença, como forma de tratar a doença adequadamente. É diretor da Clínica Pelvi Uroginecologia e Cirurgia Ginecológica em Brasília, no Distrito Federal, onde atende mulheres com endometriose, e Professor-adjunto de Ginecologia da Universidade de Brasília (UnB). (Acesse o currículo lattes do doutor Alysson Zanatta).
Tenho 23 anos e estou com endometriose umbilical. Meu Deus, pra onde mais isto pode ir?? :/
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