O doutor Alysson Zanatta, ginecologista e especialista em endometriose de Brasília, escreveu este brilhante texto sobre o enigma do diagnóstico da endometriose. Ele discorre a respeito dos desafios para o diagnóstico, os avanços para o presente e para o futuro. Você sabia que cerca de 70% das adolescentes que têm menstruação dolorosa tem endometriose? Como fazer para diagnosticar a endometriose precocemente? Com certeza se os médicos levarem a sério as cólicas das meninas mais jovens, em especial, das adolescentes, com certeza, poderemos ter o diagnóstico precoce da doença. Mais um texto exclusivo do A Endometriose e Eu e super didático que vai te fazer entender mais sobre esta enigmática doença. Beijo carinhoso! Caroline Salazar
Por doutor Alysson Zanatta
Edição: Caroline Salazar
A
Busca pelo “Santo Graal” no Diagnóstico da Endometriose
Reproduzido
com autorização, Revista SGOB – Associação de Ginecologia e
Obstetrícia
do Distrito Federal – set-out/2015
Diagnosticar
a doença não é apenas assunto médico. É assunto da mídia, da
população geral.
Assim como a maioria das doenças, o
diagnóstico precoce da endometriose é fundamental para um
tratamento efetivo e mudança de sua história natural. Nesse
sentido, a busca pelo “Santo Graal” para o diagnóstico da
endometriose é incessante. Busca-se algum método não invasivo,
possivelmente um biomarcador, que seja reprodutível, acessível, e
específico o suficiente para que o diagnóstico seja feito sem a
necessidade de cirurgia. Para tal, há mais de 100 marcadores
descritos, o mais conhecido é o CA-125. Infelizmente, nenhum deles
com suficiente predição positiva para aplicação clínica (1) .
Condizente com a importância e a
popularidade do tema, a mídia tem destacado os louváveis esforços
da jovem pesquisadora Georgia Gabriela, 19 anos, natural de Feira de
Santana/BA. Georgia foi aceita em Harvard (além de outras 8
universidades norte-americanas), e desenvolverá pesquisas também na
busca de biomarcadores passíveis de uso prático diário e
implementação na rede pública. A jovem baiana estudou,
inicialmente no Brasil, a prolactina, a progesterona, a testosterona
e o CA-125 como métodos diagnósticos. O maior mérito de Georgia
não é ter estudado marcadores para o diagnóstico da endometriose,
ainda que tenham se mostrado ineficazes em oportunidades anteriores.
Seus grandes méritos são o seu propósito de avanço, e a sua visão
abrangente sobre a endometriose como doença de cunho social, cujas
manifestações palpáveis (lesões ovarianas, nódulos de
endometriose profunda) representam já fase avançada de doença que
se iniciou precocemente.
Os avanços mais recentes no
diagnóstico da endometriose ocorreram justamente no campo do
diagnóstico dessas lesões tardias da endometriose: as lesões
profundas. Na última década, os exames de imagem (ultrassonografia
transvaginal com preparo intestinal e a ressonância magnética
pélvica com gel vaginal e contraste endovenoso) mostraram-se
eficazes e precisos no diagnóstico da doença profunda e ovariana.
Porém, esses exames mostraram-se efetivos apenas quando realizados
por profissionais capacitados ao diagnóstico da doença, o que
demonstra a necessidade de aumento da sua reprodutibilidade. Apesar
dos avanços, ainda é pouco. Há muito mais para se avançar.
Desafios
para o diagnóstico
Como falarmos do diagnóstico de uma
doença cujo padrão-ouro de diagnóstico (aparência visual durante
a laparoscopia) pode não ser reprodutível? Por exemplo, concordamos
que não há dúvidas quanto à aparência de um endometrioma
ovariano (massa cística de conteúdo achocolatado). Entretanto, o
mesmo não acontece com as lesões peritoneais, e, principalmente,
com as lesões profundas.
Quanto às lesões peritoneais, somos
ensinados que elas se mostram tipicamente na forma de lesões
hiperpigmentadas (Figura 1),
eventualmente brancas, ou vermelhas. Nossos livros-texto estão
cheios dessas imagens. Além do mais, as lesões hiperpigmentadas nos
saltam aos olhos durante a laparoscopia, o que não acontece com as
demais lesões, que serão identificadas apenas por minuciosa
inspeção. Saibamos, porém, que as lesões hiperpigmentadas
representam apenas 40% de todas as lesões de endometriose, e que até
dois terços das pacientes com endometriose não têm nenhuma lesão
hiperpigmentada (2) . Ou seja, se
entendermos que a endometriose é representada apenas por essas
lesões, teremos até 60% de chances de diagnóstico incorreto, mesmo
com a laparoscopia.
Figura 1: Lesão hiperpigmentada típica de endometriose (seta). Essas lesões representam apenas 40% do total das lesões (2) |
E o que dizer da endometriose
profunda? Aqui, o desafio é ainda maior. A teoria da “ponta do
iceberg” é bastante atual para explicar a gravidade do problema.
Em sentido figurado, quando identificamos uma lesão de endometriose
durante a cirurgia, é possível que estejamos enxergando apenas a
sua “ponta”, e que quase toda a doença esteja subjacente no
retroperitôneo, como um iceberg submerso.
As Figuras 2 a 4 ilustram o
sentido figurativo da expressão “ponta do iceberg”. As imagens
são de uma paciente de 36 anos, com dores pélvicas e progressivas
há 5 anos, além de infertilidade primária e uma falha de
fertilização in vitro. Ela foi encaminhada devido ao achado
ultrassonográfico de “nódulo em fórnice vaginal de 1 cm que pode
corresponder à endometriose”. Não havia diagnóstico clínico de
endometriose, apenas o diagnóstico ultrassonográfico, apesar do
nódulo exteriorizar-se pela vagina (Figura 2). A impressão
laparoscópica inicial poderia ser facilmente aquela de lesões
peritoneais inócuas (Figura 3), dado o seu aspecto
relativamente benigno. Tratava-se porém, de nódulo maior e
profundo, ocupando ambas as fossas pararretal e vaginal, de íntima
relação com ureter, vasos uterinos e nervos viscerais, até a sua
exteriorização pela vagina (Figura 4). Infelizmente, não há
muitas dessas figuras em nossos livros-texto. Tampouco haverá muitas
oportunidades em nossas universidades para realização de tais
cirurgias, por motivos diversos que fogem a essa discussão.
Figura 2: Nódulo de endometriose (edt) exteriorizando pelo fórnice vaginal lateral esquerdo.
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Em resumo, até mesmo a
laparoscopia, o padrão-ouro de diagnóstico da endometriose, pode
não ser reprodutível. É possível que, se você mostrar imagens de
laparoscopias a dez médicos, talvez ouvirá dez opiniões
diferentes. Pode ser que simplesmente não tenhamos sido ensinados a
identificar visualmente a endometriose. Vejam o tamanho do desafio.
Avanços
para o presente
As possibilidades mais concretas de
avanços no diagnóstico da endometriose estão no presente. Há de
se reduzir o tempo médio de 7 a 10 anos para o diagnóstico após o
início dos sintomas. Há de se reduzir o número médio de 6 a 7
médicos de diferentes especialidades pelo qual passa uma mulher
antes que possa receber o diagnóstico definitivo da doença (3) .
Medidas simples seriam uma maior
valorização da dismenorreia na adolescência, e também do achado
de endometrioma às ultrassonografias tradicionais. Por exemplo,
sabe-se que 70% das adolescentes com dismenorreia refratária a
analgésicos têm endometriose, já em fase tão precoce da vida
(4) . Assim, o uso mais disseminado da
laparoscopia na adolescência poderia certamente reduzir o tempo do
diagnóstico. Outra regra simples é o melhor entendimento do
endometrioma. Quando este for diagnosticado (fato comum à maioria
das mulheres como primeiro diagnóstico da doença), devemos entender
que o endometrioma representa doença avançada e tardia, com lesões associadas de endometriose profunda presentes
em até 99% dessas mulheres (5) .
Outra real possibilidade de avanço
no diagnóstico da endometriose seria a capacitação de maior número
de profissionais para o diagnóstico por imagem, seja à
ultrassonografia transvaginal, seja à ressonância magnética
pélvica. Com o aumento da capacitação, viria o aumento da
reprodutibilidade, essencial para qualquer ato médico que se mostre
efetivo. Os exames de imagem nos permitem não apenas um melhor
diagnóstico, mas também um seguimento das pacientes para
monitorização das respostas aos tratamentos (clínico e/ou
cirúrgico).
A abordagem deve ser simples e
objetiva: o diagnóstico da endometriose é feito inicialmente pela
história clínica e por exame de imagem, com mapeamento das lesões
profundas e ovarianas. Opta-se pelo tratamento, clínico e/ou
cirúrgico. Repete-se o mesmo exame, e com o mesmo profissional, em 4
a 6 meses após o tratamento. Se houver doença, admite-se que ela
seja persistente, e não recorrente. Se houver melhora clínica (na
ausência de medicações hormonais) e não houver sinais de doença
ao exame de imagem, admite-se que o tratamento tenha sido efetivo.
Essa estratégia será possível apenas se houver profissionais
capacitados ao diagnóstico por imagem, com reprodutibilidade dos
resultados. E isso mudará para sempre a maneira como enxergamos a
doença.
E por último, há necessidade de um
aprofundamento no ensino médico da doença. Entendermos que a
endometriose seja causada por menstruação retrógrada, e que suas
manifestações principais são lesões hiperpigmentadas e
“aderências” é muito pouco, além de ser incorreto e atrasar
inovações. Há de se focar na identificação visual de todos os
tipos de lesões, especialmente as lesões profundas. Para esse tipo
de lesão em especial, o diagnóstico correto passará,
obrigatoriamente, pelo aprofundamento do ensino de técnicas
cirúrgicas e de anatomia pélvica. É necessário que conheçamos
detalhadamente a anatomia retroperitoneal e que tenhamos desenvolvido
habilidades cirúrgicas. Caso contrário, jamais chegaremos às
lesões profundas de endometriose, e portanto, jamais as
diagnosticaremos.
Todas essas medidas não requerem
maiores investimentos em pesquisas da endometriose. Requerem apenas
capacitação e entendimento correto da doença.
Avanços
para o futuro
Existem mais de 8500 artigos
científicos publicados sobre endometriose apenas nos últimos 10
anos. Boa parte direcionados ao seu diagnóstico. As linhas de
pesquisas são múltiplas, passando por mediadores imunológicos,
genes e proteínas relacionados à implantação endometrial, e até
substâncias ambientais exógenas como dioxinas e unha-de-gato!
Os estudos dos mediadores
imunológicos, como interleucinas, linfócitos e células
natural-killers baseiam-se na hipótese de que células
endometriais livres na pelve deixariam de ser “atacadas” (ou
fagocitadas, talvez) por eventuais “falhas” imunológicas,
propiciando ao desenvolvimento da doença. É a teoria autoimune da
endometriose. Entretanto, a fagocitose de células endometriais na
cavidade pélvica jamais foi comprovada. Tampouco que sejam
“atacadas” por qualquer célula de nosso sistema imunológico.
De forma similar, estudos que
comparam o endométrio tópico (da cavidade uterina) com a
endometriose baseiam-se na hipótese de que a endometriose seria
causada pela menstruação retrógrada, ou seja, de que células de
nódulos de endometriose profunda no retroperitôneo (ou ovarianas)
seriam as mesmas células originadas do endométrio tópico, após
terem sido refluídas para a pelve. Porém, essa “invasão”
retroperitoneal (ou ovariana) por células endometriais tópicas
jamais foi comprovada. Apesar da ausência de evidências diretas,
cérebros brilhantes e incontáveis recursos financeiros são
consumidos anualmente em pesquisas baseadas em fatos biológicos
jamais comprovados.
Por outro lado, a constatação da
endometriose em fetos humanos ocorreu
pela primeira vez há 6 anos, sendo posteriormente confirmada por
outros pesquisadores (6) . Trata-se do
maior avanço recente sobre a história natural e fisiopatologia da
doença. É a confirmação de uma teoria de 150 anos (que antecede a
teoria da menstruação retrógrada), segundo a qual a endometriose é
uma doença embrionária.
A confirmação da endometriose em
fetos abre caminho para novas linhas de pesquisa, baseadas em genes e
proteínas envolvidos na embriogênese do sistema genital feminino,
como o gene HOXA10 (7) , entre outros. No
futuro, é provável que tenhamos que estudar fetos e recém-nascidos
de cobaias (quiçá de humanos, apesar das óbvias questões práticas
e éticas), ao invés de continuarmos tentando induzir a endometriose
experimentalmente. Precisaremos entender melhor os mecanismos da
metaplasia celular (transformação de um tipo celular em outro), já
que as lesões de endometriose profunda são constituídas
basicamente de células de músculo liso que passaram por metaplasia.
Por fim, precisaríamos talvez de algum método de diagnóstico não
invasivo e funcional que detecte o metabolismo de células
endometriais e a metaplasia celular, capaz de mostrar a todos
(independente de seu treinamento ou habilidade cirúrgica) onde
estariam as células de endometriose, mesmo antes que tornem nódulos
de endometriose profunda. Esse método seria análogo talvez ao que é
hoje um PET-CT, usado para detecção do metabolismo de células
cancerígenas. São apenas hipóteses e ideias para o futuro.
Conclusão
Há necessidade de avanços no
diagnóstico da endometriose, para que este seja mais precoce, e mais
reprodutível. Nesse sentido, busca-se uma “bala de prata”, um
“Santo Graal”. Um método que seja economicamente acessível, de
fácil realização, e efetivo (alta predição positiva). O Santo
Graal é possível no diagnóstico da endometriose. Antes que o
alcancemos, será preciso “enxergarmos” e entendermos a doença,
para que esforços financeiros e intelectuais sejam focados na
direção correta.
Referências:
1. May KE,
Conduit-Hulbert SA, Villar J, Kirtley S, Kennedy SH, Becker CM.
Peripheral biomarkers of endometriosis: a systematic review. Hum
Reprod Update. 2010; 16:651-674.
2. Redwine DB. The
visual appearance of endometriosis and its impact on our concepts of
disease. Prog Clin Biol Res. 1990;
323:393-412.
3. Hudelist G,
Fritzer N, Thomas A, et al. Diagnostic delay for endometriosis in
Austria and Germany: causes and possible consequences. Hum
Reprod. 2012; 27:3412-3416.
4. Laufer MR,
Goitein L, Bush M, Cramer DW, Emans SJ. Prevalence of endometriosis
in adolescent girls with chronic pelvic pain not responding to
conventional therapy. J Pediatr Adolesc
Gynecol. 1997; 10:199-202.
5. Redwine DB.
Ovarian endometriosis: a marker for more extensive pelvic and
intestinal disease. Fertil Steril. 1999;
72:310-315.
6. Bouquet de
Joliniere J, Ayoubi JM, Lesec G, et al. Identification of displaced
endometrial glands and embryonic duct remnants in female fetal
reproductive tract: possible pathogenetic role in endometriotic and
pelvic neoplastic processes. Front
Physiol. 2012; 3:444.
7. Zanatta A,
Pereira RM, Rocha AM, et al. The relationship among HOXA10, estrogen
receptor alpha, progesterone receptor, and progesterone receptor B
proteins in rectosigmoid endometriosis: a tissue microarray study.
Reprod Sci. 2015;
22:31-37.
Sobre
o doutor Alysson Zanatta:
Graduado
e com residência médica pela Universidade Estadual de Londrina,
doutor Alysson Zanatta tem especializações em uroginecologia e
cirurgia vaginal pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp),
cirurgia laparoscópica pelo Hospital Pérola Byington de São Paulo
e doutorado pela Universidade de São Paulo, USP. Suas principais
áreas de atuação são a pesquisa e o tratamento da endometriose,
com ênfase na cirurgia de remoção máxima da doença. Seus
interesses são voltados para iniciativas que promovem a
conscientização da população sobre a doença, como forma de
tratar a doença adequadamente. É diretor da Clínica
Pelvi Uroginecologia e Cirurgia Ginecológica em
Brasília, no Distrito Federal, onde atende mulheres com
endometriose, e Professor-adjunto de Ginecologia da Universidade de
Brasília (UnB). (Acesse
o currículo lattes do doutor Alysson Zanatta).
Ótimo artigo, parabéns!
ResponderExcluirRealmente deveriam descobrir algo que melhore o diagnóstico.
ResponderExcluirFato que eles deveriam melhorar o diagnóstico, precisão poderia salvar muitas vidas.
ResponderExcluirMuitas morrem por causa de diagnóstico tardio, melhorar isso salvaria diversas vidas.
ResponderExcluirTem coisas que não dá para compreender após tantos avanços na medicina.
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