Neste texto, o doutor David Redwine aborda a aparência visual da endometriose e o que isso impacta no conhecimento dos médicos. É um texto longo, mas é muito importante a leitura completa pelas portadoras para que elas passem a conhecer mais a respeito da doença. Dentre os muitos mitos que há sobre a doença, existe também o sobre as cores dos focos. O doutor Charles Koh falou sobre isso na entrevista exclusiva que o A Endometriose e Eu fez com ele (leia aqui) e o doutor David Redwine também, leia aqui. É importante que o cirurgião conheça as diversas formas de manifestações da doença, dentre elas, está a cor. Só assim os focos poderão ser todos exterminados, diminuindo a chance de reincidência da doença. Segundo o texto, boa parte dessa reincidência se dá pelo fato de o cirurgião desconhecer as manifestações dos focos. O artigo também fala sobre a endometriose microscópica, a gravidez e a menopausa induzida. Após o texto temos a nota do tradutor do doutor Alysson Zanatta, que também vai te dar informações preciosas sobre o texto. Aos poucos iremos desmistificando a endometriose para que você, portadora, conheça mais sobre a doença. Beijo carinhoso! Caroline Salazar
Por doutor David Redwine
Tradução: doutor Alysson Zanatta
Edição: Caroline Salazar
A Aparência Visual da Endometriose e o Seu Impacto Sobre Nossos Conceitos da
Doença
Introdução
A aparência visual da endometriose é importante porque
todo o processo intelectual e terapêutico inicia-se com a identificação da
doença pelo cirurgião. A identificação incorreta da doença pode causar viés de
seleção em um primeiro nível e confundir todas as conclusões, levando a
conceitos incorretos sobre a epidemiologia, história natural, origem da doença
e tratamento. A história do estudo da endometriose é distinta ao longo dos anos
pelo reconhecimento progressivo de manifestações atípicas ou sutis da doença.
Entretanto, muitos dos conceitos que guiam o conhecimento atual provêm de
antigos artigos escritos por autores que não conheciam todas as aparências
visuais da endometriose. Apesar do entendimento das apresentações sutis da
doença ter aumentado irregularmente entre os médicos, a aplicação desse
entendimento não se traduziu em avanços no conhecimento e em melhores
tratamentos. A importância numérica da doença atípica, sutil, não-hemorrágica
foi recentemente demonstrada: pelo menos dois terços das pacientes têm doença
com uma aparência que muitos médicos não estão treinados para reconhecerem,
enquanto 40% das pacientes têm apenas essa forma de apresentação da doença.
... pelo menos dois
terços das pacientes têm doença com uma aparência que muitos médicos não estão
treinados para reconhecerem, enquanto 40% das pacientes têm apenas essa forma
de apresentação da doença...
Os erros de identificação visual podem ser agravados pela
falta de biópsia e possivelmente pelo uso de sistemas de vídeo-monitores. Entendimento
e identificação errôneos são consequência do viés de seleção visual.
A História da
Aparência Visual da Endometriose
A aparência visual da endometriose é historicamente
descrita em termos de distorção anatômica e também em função de sua cor.
Autores antigos, trabalhando sob a perspectiva da
laparotomia, introduziram conceitos da doença derivados de estudos transversais
de pacientes mais velhas com endometriomas ovarianos, adesões, e
bloqueio de fundo de saco de Douglas (1, 2, 3, 4). Assim, foi identificado um
índice geral de fertilidade de 40% em pacientes com uma doença que hoje seria
considerada severa ou estágio IV (5). Estes estudos antigos concentraram-se
pesadamente na doença ovariana porque sem dúvida a doença ovariana é mais óbvia
em sua apresentação clínica e cirúrgica do que as formas mais leves da doença.
Até mesmo Sampson eventualmente percebeu que a doença peritoneal era mais comum
e clinicamente mais significativa que a doença ovariana (6), mas a noção que os
ovários são os locais mais comuns da doença foi irreparavelmente inoculada na
literatura médica, apesar de não unanimemente (11,12). Entretanto, mesmo em um
grande centro de referência dedicado especialmente a pacientes com
endometriose, onde o conhecimento sobre o amplo espectro da aparência visual da
endometriose é aplicado a todas as pacientes (Tabela 1), a doença severa e o
envolvimento ovariano ainda não são tão comuns quanto os estágios mais iniciais
e mais leves da doença. Estes achados são semelhantes a achados anteriores em
um pequeno grupo de pacientes não referenciadas nos primeiros anos de minha
prática médica (12). As conclusões baseadas em observações de pacientes com
doença severa ou predominantemente ovariana podem não ser aplicáveis à maioria
das pacientes que têm estágios mais leves da doença.
... as
conclusões baseadas em observações de pacientes com doença severa ou
predominantemente ovariana podem não ser aplicáveis à maioria das pacientes que
têm estágios mais leves da doença...
Envolvimento do ovário
Estágio
|
Total
|
Apenas direito
|
Apenas esquerdo
|
Ambos
|
Estágio 1
| 322 |
9
|
14
|
4
|
Estágio 2
|
128
|
13
|
16
|
6
|
Estágio 3
|
38
|
7
|
7
|
5 |
Estágio 4
|
59
|
11
|
6
|
18
|
Total
|
547
|
40
|
43
|
33
|
A cor da lesão de endometriose é a outra característica
morfológica para a qual os cirurgiões estão atentos (ou não) durante as
cirurgias. Já que muitas pacientes com endometriose não têm a distorção
anatômica severa encontrada na doença estágio III e IV, a cor da lesão é o
fator único mais importante na identificação da doença. Como os endometriomas
ovarianos estão cheios de um líquido escurecido sanguinolento, Sampson (2)
utilizou a palavra “chocolate” em seu título do artigo para descrever esses
cistos, e descreveu incidentalmente a doença peritoneal como sendo uma “bolha
hemorrágica”, denotando portanto uma aparência negra, hemorrágica da doença. Meigs
relatou um “fluido negro, cor de chocolate, orgânico” nos endometriomas e
doença peritoneal “azul, preta, ou roxa” (13). Sem saber que a endometriose tem
características biológicas fundamentalmente diferentes do endométrio nativo
(14, 15, 16, 17, 18, 19), Sampson (2, 20) adotou (de forma compreensível) o
conceito de menstruação cíclica pela lesão de endometriose coincidente com a
menstruação normal. Isto reforçou o conceito de uma aparência visual negra,
hemorrágica da doença que poderia confiável e consistentemente mudar de
aparência de acordo com a fase do ciclo menstrual, apesar dos estudos modernos
falharem em confirmar esta noção (19). Alguns estudos antigos, entretanto,
ilustraram a cor branca como manifestação da doença (20, 21), e lesões incolores
foram mencionadas por um cirurgião geral em 1950 (11). Muitos autores relataram
ao longo dos anos a doença peritoneal como sendo lesões negras e hemorrágicas
(22, 23, 23, 25, 26, 9, 27, 28, 29). Nos dias de hoje os médicos falam do
“implante negro semelhante à pólvora”, apesar da origem desse termo ser
incerta.
... já
que muitas pacientes com endometriose não têm a distorção anatômica severa
encontrada na doença estágio III e IV, a cor da lesão é o fator único mais
importante na identificação da doença...
Não haveria muito dano aos nossos conceitos se as lesões
escurecidas e hemorrágicas da endometriose fossem de longe as lesões mais
comuns da doença. Entretanto, apesar de muitos autores terem mencionado outras
cores e várias apresentações sutis ao longo dos anos (20, 11, 21, 30, 31, 334,
33, 34, 35), os estudos modernos atuais têm confirmado a dominância de tais
lesões não hemorrágicas, atípicas, ou sutis (36, 37, 38, 39, 40). Estes relatos
sobre a aparência visual, utilizando esquemas simples de classificação de
cores, indicam que não apenas muitas pacientes têm lesões que não são negras e
para as quais muitos médicos poderiam passar despercebidos, mas que
numericamente, as lesões negras em pólvora são superadas pelas lesões de outras
cores e aparências (figuras 1-3). Estes achados são consistentes entre
pacientes com infertilidade primária (36), dor (37,39), seja em hospitais
rurais (37) ou urbanos (36, 40, 39). Entre 15% (38) a 40% (37) das pacientes com
endometriose têm apenas lesões sutis ou não negras. Examinando-se pacientes em
idades mais avançadas, há uma sugestão imprecisa de que as lesões de
endometriose evoluem de não pigmentadas para hemorrágicas ou negras (30, 36,
37), apesar que qualquer cor de lesão pode ser encontrada em qualquer faixa
etária. Caso não seja reconhecida, essa evolução na aparência da endometriose que
ocorre com o avançar da idade pode levar a conceitos e diagnósticos errôneos
sobre a história natural da doença. Um cirurgião pode achar que uma paciente
não tem nenhuma, ou pouca endometriose inicialmente, encontrar uma doença mais
óbvia em uma cirurgia subsequente e concluir que surgiu uma nova doença ou que
esta recorreu, quando na verdade a persistência da doença é que foi revelada.
Os relatos mais antigos mencionam pacientes com idade média de 35 a 39 anos,
que é justamente quando as lesões negras predominam, e portanto não é surpresa
que o “implante negro em pólvora” é a lesão predominantemente relatada ao longo
da história.
... estes
relatos sobre a aparência visual, utilizando esquemas simples de classificação
de cores, indicam que não apenas muitas pacientes têm lesões que não são negras
e para as quais muitos médicos poderiam passar despercebidos, mas que
numericamente, as lesões negras em pólvora são superadas pelas lesões de outras
cores e aparências...
A confusão gerada por essas
considerações sobre a aparência visual da endometriose na literatura médica
pode ser imensa, como revelada em um recente estudo. Em uma população rural de
pacientes ginecológicas não referenciadas no Oregon, e que supostamente deveria
ser representativa da população que muitos médicos atendem, a observação dessas
lesões sutis levou a achados muito surpreendentes. Utilizando um simples mapa
pélvico para averiguar a extensão da endometriose pelo número de áreas
envolvidas pela doença, não pôde ser encontrada nenhuma forte evidência linear
de um efeito protetor de gestação prévia (12). Da mesma forma, apesar de não
corrigido para pacientes que nunca tentaram concepção, a maioria das pacientes
tinha gestação(ões) anteriores, uma observação notada por muitos outros
pesquisadores (41, 42, 43, 44). O mesmo mapa pélvico não demonstrou nenhuma
evidência de aumento no número de áreas envolvidas em grupos de pacientes mais
velhas (12). Essa mesma falta de progressão da doença em humanos está de acordo
com o achado da falta de progressão de endometriose experimental em macacos,
onde a administração tônica, não cíclica de estrogênio ou progesterona (45,
46), ou de ambos (46) de maneira tônica (45) e cíclica (45) resultou na
manutenção, porém não em disseminação à distância da doença. A endometriose
experimental em animais envolve o transplante autólogo de endométrio nativo com
populações normais de receptores hormonais. Portanto, a aplicação em humanos
dos achados provindos de endometriose experimental deve ser feito com grande
temeridade já que a endometriose experimental em macacos (47) ou humanos não
têm populações normais de receptores hormonais encontrados no endométrio
nativo, e portanto as comparações fisiopatológicas podem ser incorretas.
A cor das lesões de endometriose é subjetiva, e as
variações entre os observadores e as possíveis aparências mutáveis da
endometriose tornam quase impossível a categorização de todas as lesões, e
levantam questionamentos sobre vieses entre os médicos nos estudos
colaborativos. De uma maneira simples, o princípio norteador do cirurgião deve
ser este: qualquer anormalidade no peritônio pélvico, não importa o quão
pequena, sutil, ou que cor tenha, deve ser considerada uma possível
endometriose até que seja provado o contrário por biópsia.
... qualquer
anormalidade no peritônio pélvico, não importa o quão pequena, sutil, ou que
cor tenha, deve ser considerada possível endometriose até que seja provado o
contrário por biópsia...
As variadas manifestações visuais da endometriose
possivelmente refletem as diferenças biológicas das populações dos receptores
hormonais ou do status funcional das lesões. De fato, a síntese de prostaglandina
F (PGF) pela endometriose varia de acordo a aparência visual da lesão (48).
Quando lesões de aspecto hemorrágico são estudadas, foi descoberto que as
lesões vermelhas produzem maiores quantidades de PGF do que as lesões
amarronzadas, que produzem mais PGF do que as lesões negras em pólvora. Lesões
sutis frequentemente parecem inócuas, e as lesões brancas algumas vezes são
denominadas “inativas”. Entretanto, as pacientes podem ter dor (37) ou terem
redução da fertilidade (36) associadas a essas lesões sutis, muitas das quais
são não-hemorrágicas. Portanto, deve ser evitada a tentação de ignorarmos ou
menosprezarmos a doença porque ela aparenta ser mínima ou “inativa”. Também a
ser evitada é a conclusão que tal aparência visual é evidência de erradicação
médica ou cirúrgica da doença, a menos que a ausência da doença seja
demonstrada por biópsia.
Qualquer que seja a teoria sobre a origem da endometriose
que o médico acredite, cada teoria significa necessariamente a existência de
estágios iniciais e intermediários da doença antes que a clássica lesão negra
em pólvora seja encontrada. A atual identificação de lesões atípicas ou sutis
satisfaz perfeitamente a condição que deve haver pontos de parada na estrada
que leva às lesões classicamente mais visíveis. Portanto, essas lesões têm
importantes papéis histórico, sintomático e ontológico. Estudos adicionais dessas
lesões em pacientes cada vez mais jovens permitirá que pesquisadores descubram
sua origem, desvendando portanto importantes segredos biológicos e epidemiológicos.
... deve
ser evitada a tentação de ignorarmos ou menosprezarmos a doença porque ela
aparenta ser mínima ou “inativa”... essas lesões têm importantes papéis
histórico, sintomático e ontológico...
Lesões sutis, assim como a doença mais nítida, podem ter
aparências mutáveis com quantidades variáveis de estroma circundando elementos
glandulares, com ou sem hemorragia subclínica subjacente. Já que as definições aceitas de endometriose
variam desde a presença obrigatória de glândulas e estroma endometrial, até a
simples aceitação de um material negativo à biópsia, mas que tem a aparência de
endometriose durante a cirurgia, parece ser bem fundamentada a descrição histológica
das lesões sutis que têm glândulas e estroma como endometriose, feita por autores
modernos. Nem todas as biópsias das lesões atípicas provarão ser endometriose.
Inflamação crônica, microcalcificações peritoneais e inclusões glandulares são
encontradas ocasionalmente, apesar de menos comumente do que a endometriose.
Várias conclusões importantes podem resultar da discussão
acima: se pelo menos dois terços das pacientes podem ter doença que não são
percebidas pelos cirurgiões, então o subdiagnóstico durante a cirurgia é uma
rotina, e um grau imensurável de vieses de identificação visual foi sedimentado
em nosso entendimento sobre a doença. Além disso, a prevalência de endometriose
na população geral pode ser o dobro daquela estimada, já que a falha completa
do diagnóstico pode estar presente em até 40% das pacientes que têm apenas lesões
atípicas não negras. E por último, afirma-se a importância fundamental da
biópsia no processo científico, já que os estudos modernos que confirmam a
importância numérica das lesões sutis de endometriose utilizam um alto grau de
comprovação por biópsia. Em relação à confusão que tem acompanhado os estudos
sobre a doença ao longo das décadas, parece provável que a identificação
incompleta da doença e a falta de comprovação por biópsia tiveram papéis
importantes.
... se
pelo menos dois terços das pacientes podem ter doença que não são percebidas
pelos cirurgiões, então o subdiagnóstico durante a cirurgia é uma rotina...
Endometriose
microscópica: ela pode ser visualizada?
Com a identificação de lesões de endometriose cada vez
mais sutis surgiu o conceito de endometriose microscópica, que poderia estar
presente em 25% das pacientes (49). Uma implicação da endometriose microscópica
é que ela não poderia ser vista, e portanto não poderia ser destruída
cirurgicamente. Entretanto, dois estudos falharam em comprovar a existência de
endometriose microscópica (36,50). Há várias diferenças significativas na
metodologia de visualização que podem explicar os achados discrepantes. Murphy
e colegas estudaram 20 pacientes com doença estágio III e IV operadas por
laparotomia e obtiveram biópsias grandes (1-3cm) do que era considerado
peritônio comum, por consenso. Utilizando microscopia eletrônica de varredura
em uma potencia baixa, notou-se que 25% das pacientes tinham estruturas
glandulares compatíveis com endometriose presentes na superfície peritoneal.
Jansen e Russell (36), utilizando critérios incertos, obtiveram 10 biópsias
peritoneais de tamanho desconhecido dos ligamentos úterossacros em um número
desconhecido de pacientes operadas por laparoscopia, e todas as biópsias foram
negativas para endometriose quando analisadas por microscopia ótica. Redwine
(50), utilizando critérios definidos para endometriose em pacientes com doença
estágio I e II, uma magnificação obtida pela aproximação do laparoscópio até 10
mm da superfície peritoneal, e obtendo pequenas biópsias do peritônio pélvico
posterior em 24 pacientes com e 9 pacientes sem endometriose, não pôde
encontrar endometriose em qualquer uma das amostras quando avaliadas por
microscopia ótica. Fica claro a partir destes estudos que muitas pacientes com
endometriose não têm doença microscópica que seria invisível, já que todos os
autores puderam identificar consistentemente peritônio normal sem endometriose
em uma alta porcentagem de pacientes, independente da metodologia utilizada.
Parece que a laparoscopia é um método mais preciso de identificar o peritônio
normal quando comparada à laparotomia. De fato, Murphy e colegas, utilizando
técnica similar à de Redwine, não puderam encontrar endometriose no peritônio
normal, apesar destes achados não terem sido enfatizados (51). Portanto, não se
justifica um pessimismo cirúrgico. Deve ser possível encontrar e destruir
cirurgicamente toda a doença peritoneal em 75% a 100% das pacientes, já que a
característica principal da endometriose é o peritônio anormal.
... não
se justifica um pessimismo cirúrgico. Deve ser possível encontrar e destruir
cirurgicamente toda a doença peritoneal em 75% a 100% das pacientes, já que a
característica principal da endometriose é o peritônio anormal...
O menor ângulo visual detectável pelo olho humano sob
condições experimentais ideais é menor que 0,5 segundo de arco, enquanto a
acuidade visual normal permite a fácil detecção de 1 minuto de arco. Metade de
um segundo de arco ao alcance do braço (70cm) corresponde à distância de apenas
alguns mícrons. Portanto, o olho humano nu é oticamente capaz de ver lesões de
endometriose menores que 100 mícrons (figura 4), e mais ainda com a
magnificação do laparoscópio aproximado junto à superfície peritoneal. Em uso
panorâmico, entretanto, o laparoscópio reduzirá o tamanho aparente dos objetos,
interpondo portanto ainda mais aparências hemorrágicas além da acuidade visual
humana. Porém, a acuidade visual envolve mais que apenas a resolução ótica.
Ela inclui um processo físico de saber o que é um peritônio normal, e o que não
é. Isso pode ser obtido apenas pela experiência, atenção aos detalhes, e
rigoroso controle com biópsias.
Figura
4: o
olho humano nu é oticamente capaz de identificar lesões de endometriose com
dimensões menores que 100 microns. Como essa imagem demonstra, a endometriose
“microscópica” pode ser vista à uma distância ao alcance dos braços.
Um conceito paralelo àquele de endometriose “microscópica”
é o de endometriose “óbvia” que não pode ser confirmada histologicamente.
Sugere-se que isso ocorra em um terço das pacientes (53). Estas alterações
“óbvias” ou não são endometriose, ou não são causadas por ela. Se as alterações
fossem causadas pela endometriose, então, talvez o micrótomo não teria cortado
a lesão no local de glândula e estroma, e os resultados discrepantes se
deveriam a erros de laboratório. Se as alterações não fossem devido à
endometriose, mas sim devido à alguma habilidade do peritônio em produzir tais
alterações visuais, chamar então essas alterações de endometriose seria
incorreto e levaria a um grau imensurável de opiniões e confusão na literatura
já que permitiria o diagnóstico da doença na ausência de comprovação por
biópsia. Sampson ilustrou em 1921 a importância do controle com biópsia no
estudo da endometriose demonstrando em sua série que mais da metade dos cistos
achocolatados do ovário não eram de endometriose (2).
Não foi demonstrado qual a porcentagem das lesões sutis de
endometriose podem ser visualizadas no monitor cirúrgico. Os sistemas de vídeo
não demonstram detalhes tão bem quanto o olho humano. Os monitores de vídeo não
colaboraram para o estudo das aparências sutis da endometriose (37, 40) ou
doença microscópica (49, 36, 50). Portanto, deve haver cautela com a sua
aplicação no tratamento e estudo científico da endometriose.
Verificação
visual da resposta ao tratamento médico.
O sucesso no tratamento médico da endometriose é
frequentemente deduzido por meios inespecíficos como a resposta à dor ou à
infertilidade. Apesar de parecer claro que a endometriose é uma causa frequente
de dor, a relação com a infertilidade permanece casual mais do que de
causa-efeito comprovada (54). Portanto, repetidas intervenções cirúrgicas são
mais adequadas para a avaliação real resposta da doença ao tratamento médico ou
cirúrgico. Em uma segunda cirurgia, o investigador tem a oportunidade de confirmar
as impressões visuais através da biópsia. Isso nem sempre é feito, entretanto.
As dificuldades ocorrem da mesma maneira com a necessidade de confirmação
visual da doença antes ou depois do tratamento médico.
A pseudogestação como tratamento da endometriose foi
baseada na presunção de que a gestação previne ou melhora a endometriose,
apesar de não haver provas para isso àquela época (55). O ímpeto pela
pseudogestação surgiu das observações cirúrgicas de uma paciente de 25 anos de
idade. Uma estrutura cística, marrom-escura foi removida de seu ovário direito
durante a cesariana e que revelou uma mudança mínima, necrose ocasional, e
possivelmente estroma endometrial. Não foi encontrado nenhum elemento
glandular. Apesar da paciente ter sintomas de dor antes da gestação, a mesma não
tinha um diagnóstico cirúrgico de endometriose antes de engravidar, mas ainda
assim foi concluído que a gestação curou a sua endometriose ovariana. Estudos
subsequentes que avaliaram a resposta endometrial, ao invés daquela da lesão de
endometriose (56, 57, 58) permitiram, por algum tempo, a noção que a
pseudogestação poderia curar a endometriose, quando na realidade o que ocorria
era a persistência da doença (59, 44).
O desenvolvimento do tratamento de pseudomenopausa com o
danazol (agonistas do hormônio de liberação da gonadotrofina (GnRHa) também foi influenciado pelas considerações da
aparência visual da doença. Um estudo de impacto (60) foi ilustrado com muitas
fotografias do tipo “antes e depois” do tratamento mostrando uma resolução
aparente das lesões de endometriose. Após o tratamento, as biópsias foram
obtidas de áreas que ainda eram aparentemente suspeitas para endometriose, e
15% das pacientes mostraram doença residual. As biópsias não foram obtidas de
áreas com melhora ou resolução visual da doença. Apesar de ter havido
esperanças de que a endometriose poderia ser erradicada por um tratamento de
pseudomenopausa, agora parece que o danazol não erradica a endometriose em
nenhum estágio ou localização (61, 62, 63, 64), mas apenas reduz a reação
peritoneal adjacente. Isso aparentemente reduz a aparência hemorrágica
“clássica” para uma aparência não-hemorrágica, com a forte impressão visual de
que a doença foi erradicada, quando na verdade não o foi (62). A menopausa cura a endometriose? A gravidez cura a endometriose?
Os estudos com os agonistas do hormônio de liberação da
gonadotrofina (GnRHa) fornecem exemplos atuais dos fortes efeitos da aparência
visual da doença. Assim como nos antigos estudos com o danazol, um estudo
pioneiro de GnRHa (65) foi ilustrado com muitas fotografias “antes e depois”.
Apesar de haver melhora visual, essas áreas de melhora foram biopsiadas após o
tratamento e a endometriose foi encontrada em muitas pacientes. Outros autores
não demonstraram que o GnRHa erradica a endometriose (66). Um recente estudo
duplo-cego randomizado (67) comparou GnRHa com danazol e avaliou a aparência
visual da endometriose ao final do tratamento, quando a melhora visual dá a
impressão de erradicação da doença (62).
Como é impossível obter biópsias da mesma lesão de
endometriose antes e depois do tratamento, o estudo histológico dos resultados
do tratamento médico é baseado na presunção que qualquer biópsia obtida antes
ou após o tratamento será representativa da doença não biopsiada na pelve, e
que toda a doença irá responder ao tratamento da mesma maneira. Por causa das
várias e possíveis aparências histológicas e fisiopatológicas sutis da
endometriose que são possíveis em cada paciente, essa presunção pode nem sempre
ser válida. Se o diagnóstico visual impreciso for incluído no processo, então
os resultados do tratamento médico estão sujeitos a erros cumulativos de duas
fontes. Um controle rigoroso por biópsia após o tratamento médico ajudaria a
dissipar a confusão de termos como “resolução, regressão, atrofia,
erradicação”, e “cura”.
... um
controle rigoroso por biópsia após o tratamento médico ajudaria a dissipar a
confusão de termos como “resolução, regressão, atrofia, erradicação”, e “cura”...
Verificação
visual da resposta ao tratamento cirúrgico
O tratamento cirúrgico inicial da endometriose depende
completamente da opinião do cirurgião sobre quais alterações visuais podem ser
endometriose e quais portanto deveriam ser excisadas, coaguladas, ou
vaporizadas. Os resultados do tratamento cirúrgico podem ser confundidos pela
identificação incompleta e, consequentemente, com a remoção incompleta da
doença na cirurgia inicial, já que uma doença que não é identificada não será
tratada. Em uma reoperação, a avaliação da persistência da doença também está
sujeita ao mesmo efeito, resultando falsamente em uma baixa taxa de
persistência. Além do mais, a mudança na aparência da doença irá gerar uma
falsa impressão do surgimento de nova doença. Caso seja utilizada vaporização a
laser, podem ocorrer depósitos de carbono (figura 5), que podem ser
interpretadas erroneamente como doença persistente durante a reoperação. A
vaporização a laser, eletrocoagulação ou excisão podem todas causar fibrose
peritoneal esbranquiçada que podem ou não conterem doença residual. As
observações mais relevantes dos efeitos do tratamento cirúrgico seriam portanto
aquelas feitas pelo mesmo cirurgião antes e após a cirurgia, aplicando-se os
mesmos princípios de visualização, com atenção à doença óbvia e à sutil, e com
controle por biópsia.
|
O
impacto da aparência visual da endometriose sobre os nossos conceitos da doença
Todos os conceitos sobre a endometriose resultam da
visualização da doença durante a cirurgia. Se a doença foi visualizada completa
e corretamente durante o estudo, e se as populações avaliadas forem
representativas da população geral com endometriose, então, os nossos conceitos
sobre a doença estão sedimentados sobre uma base sólida. Se a visualização
incompleta ou incorreta da doença for associada ao estudo de populações não
representativas da população geral, então os nossos conceitos são incorretos,
muito em parte pelos clichês de “implante negro em pólvora”, “dor que é causada
pelo sangramento cíclico dos implantes”, ou “doença inativa”. Se graus
variáveis de identificação visual correta forem associados a populações que são
representativas em diferentes graus, então, temos uma Torre de Babel. Os
pesquisadores seriam como o homem cego que examina o elefante, com o resto dos
profissionais sendo expectadores. Cada examinador pode enxergar uma doença
diferente. Esterileutas que trabalham em clínicas urbanas de reprodução humana
enxergarão a endometriose por um ponto de vista. Ginecologistas gerais a
enxergarão de uma outra maneira. Clínicos com menor experiência serão
influenciados pelos especialistas em reprodução humana, que podem estar estudando
um sintoma e não a doença na realidade. Aqueles que não conseguirem identificar
a doença ficarão confusos e desapontados com os seus resultados de tratamentos,
apesar de não saberem exatamente o porquê. Em alguns momentos, parecerá até
mesmo que as pessoas não estão falando sobre a mesma doença. As pacientes
perceberão essa confusão e ficarão desapontadas. Parecerá irreal um progresso
significativo no entendimento da verdadeira natureza da doença.
... todos
os conceitos sobre a endometriose resultam da visualização da doença durante a
cirurgia...
Permanecemos em nossa infância em relação ao entendimento
da endometriose, e há muito o que aprender em todo um futuro. Nós temos um
entendimento muito melhor da aparência visual da endometriose. O impacto desse
entendimento será enorme, já que surgirão muitas frutíferas linhas de pesquisa
em ciência clínica e básica. Aumentarão a exatidão de nossas observações e a
nossa profundidade de percepção da doença, assim como a nossa habilidade de
atender às nossas pacientes. A confusão que cerca a endometriose será resolvida
apenas com o conhecimento ganho pelo estudo das lesões excisadas de qualquer
aparência, portanto parece ser nossa obrigação atual desenvolver melhores
maneiras de identificar e remover a endometriose.
... aqueles
que não conseguirem identificar a doença ficarão confusos e desapontados com os
seus resultados de tratamentos, apesar de não saberem exatamente o porquê...
Nota do Tradutor:
Neste artigo, o Dr. David Redwine chama a atenção para a necessidade da correta
identificação visual da endometriose peritoneal durante a cirurgia e de sua
confirmação por biópsia, para que possamos avançar em nosso entendimento sobre
a doença. É altamente provável que muito de nosso conhecimento atual esteja sedimentado
sobre impressões errôneas, já que uma grande parte dos cirurgiões não está
preparada para identificar corretamente as lesões. Não porquê sejam “piores” ou
“melhores” cirurgiões, mas simplesmente porque, para muitos de nós, ainda não
foi demonstrado o que realmente é endometriose. A complexidade aumenta ainda
mais se considerarmos a endometriose profunda (que não é objeto desse artigo),
que é aquela endometriose que está abaixo do peritônio, somente visível se a
buscarmos ativamente durante as cirurgias.
Trata-se
de um constante exercício físico e mental, onde devemos duvidar constantemente
do que nossos olhos dizem à nossa mente. Nosso cérebro está preparado para
identificar e interpretar corretamente apenas objetos e fatos sobre os quais já
recebemos informações prévias. E não apenas temos que recebe-las, mas temos
também que acreditar nelas. Se identificamos corretamente a endometriose, temos
uma chance de removê-la durante a cirurgia, o que dependerá de nossas
habilidades e de outros fatores. Se não a identificamos, não temos chance
alguma.
Como
bem enfatizado pelo Dr. Redwine, tudo, absolutamente tudo, depende da
identificação da doença. Se conseguimos identificar a doença, temos que
acreditar que a remoção da doença será efetiva para o seu tratamento
definitivo. Mas se, mesmo identificando a doença corretamente, acreditarmos que
não importa o quanto de esforço façamos a doença irá “voltar” com as próximas
menstruações, então é como se já fizéssemos a cirurgia derrotados pela endometriose.
Sobre o doutor Alysson Zanatta:
Graduado e com residência médica pela Universidade Estadual de Londrina, doutor Alysson Zanatta tem especializações em uroginecologia e cirurgia vaginal pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), cirurgia laparoscópica pelo Hospital Pérola Byington de São Paulo e doutorado pela Universidade de São Paulo, USP. Suas principais áreas de atuação são a pesquisa e o tratamento da endometriose, com ênfase na cirurgia de remoção máxima da doença. Seus interesses são voltados para iniciativas que promovem a conscientização da população sobre a doença, como forma de tratar a doença adequadamente. É diretor da Clínica Pelvi Uroginecologia e Cirurgia Ginecológica em Brasília, no Distrito Federal, onde atende mulheres com endometriose, e Professor-adjunto de Ginecologia da Universidade de Brasília (UnB). (Acesse o currículo lattes do doutor Alysson Zanatta).
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