A endometriose é uma doença complexa, pois existem várias manifestações da mesma doença. O cirurgião precisa ser experiente e conhecer as diversas aparências visuais dos focos para retirá-los em sua totalidade. A laparoscopia é o único meio de erradicar a doença, quando há a remoção dos focos pela raiz. Cada cirurgia é única, por isso o conhecimento do cirurgião é muito importante. Neste texto o doutor David Redwine explica como é feito o diagnóstico da endometriose pela laparoscopia. Por ser um texto muito importante, que com certeza ajudará muitos cirurgiões brasileiros, vou dividi-lo em duas partes para não ficar muito cansativo, principalmente para as portadoras interessadas em aprender mais sobre a doença. Na primeira, o doutor Redwine aborda como deve ser feito a laparoscopia, desde o posicionamento da paciente na mesa cirúrgica, que instrumentos usar, até as diferentes manifestações da doença. No texto ele é enfático ao afirmar que é dever do cirurgião conhecer o peritôneo normal, pois tudo que ele achar "anormal" deverá ser retirado e enviado para biópsia. Muitos cirurgiões procuram apenas os focos mais fáceis de serem vistos e interpretados, como as lesões negras, por exemplo, e quando não as encontram dizem que a paciente não tem endometriose. Resultado: ela continua com dores e se passando por louca. O doutor Redwine aborda também a questão da doença invisível. Eu já escutei de algumas pessoas que a endometriose não tem cura por ser uma doença microscópica. Já o doutor Redwine assegura que todas as manifestações da doença podem ser vistas a olho nu pelo cirurgião, já que não há foco menor que um fio de cabelo (que pode ser devidamente visto por qualquer pessoa). E não se esqueça: um bom cirurgião é aquele que conhece e é capaz de identificar todas as manifestações da endometriose. E não ir atrás apenas daqueles focos mais comuns. Compartilhe mais um texto exclusivo A Endometriose e Eu e espalhe a correta conscientização da endometriose. Beijo carinhoso! Caroline Salazar
Por doutor David Redwine
Tradução: doutor Alysson Zanatta
Edição: Caroline Salazar
Diagnóstico laparoscópico da
endometriose - parte 1:
A endometriose está comumente associada à dor pélvica e
infertilidade nas mulheres. Apesar de o diagnóstico poder ser fortemente
suspeitado pela história e pelos achados do exame clínico, a cirurgia é
necessária para o diagnóstico correto. Uma laparoscopia adequada depende de
fatores técnicos e cognitivos específicos. O posicionamento seguro e correto da
paciente e dos trocateres, além do conhecimento da aparência visual e
manifestações da doença, são todos importantes. A distinção entre doença
superficial e profunda invasiva é essencial para o uso da técnica cirúrgica
adequada.
A paciente deve ser posicionada afastada o suficiente na
borda inferior da mesa para que a manipulação uterina seja possível (Figura 1).
Se o quadril da paciente não estiver suficientemente à frente da borda da mesa,
a anteversão do útero pode ser inapropriada durante a cirurgia e levar a
problemas no diagnóstico e tratamento cirúrgico. As pernas da paciente devem
estar adequadamente acomodadas por perneiras que não permitam que ela
escorregue na mesa cirúrgica quando posicionada em Trendelemburg acentuado (30
graus). Recomenda-se que o próprio cirurgião posicione o quadril e as pernas da
paciente de modo a se assegurar do correto acolchoamento para se evitar lesão
ao nervo fibular, já que a duração da cirurgia pode ser difícil de se prever.
Os braços da paciente devem estar presos ao longo do seu corpo para permitir ao
cirurgião movimentos amplos e livres durante a cirurgia e reduzir as chances de
lesão do plexo braquial. Cobrir partes
expostas com cobertores grossos pode ajudar a manter o calor corporal, e uma
manta aquecida pode ser considerada para casos longos. A bexiga é drenada por
uma sonda vesical.
Posicionamento
dos trocateres:
Uma adequada visualização da pelve requer a colocação de
pelo menos dois trocateres, um juntamente com o laparoscópio na punção
umbilical, outro na linha média suprapúbica para um probe de manipulação ou
pinça atraumática (Figura 1). Estes trocateres, combinados com uma manipulação
uterina vigorosa, permitirão que cada superfície pélvica seja visualizada. De
forma prática, muitos cirurgiões irão se beneficiar de uma terceira punção
abdominal que permite a utilização de um irrigador / aspirador para uma
performance eficiente da cirurgia laparoscópica. Uma punção direta com trocater
permanente de 10-mm através do umbigo é segura e eficiente. A ponta do trocater
torna-se levemente cega com o uso prolongado, o que aumenta a sua segurança. A
inserção direta do trocater evita a inserção de uma agulha pequena, pontiaguda,
para insuflação do gás carbônico. A parede abdominal deve ser elevada com as
mãos ou pinças, e o trocater deve ser inserido direcionado ao fundo da pelve,
pois de outra forma pode haver lesão de grandes vasos sanguíneos.
Após a inserção do laparoscópio
e confirmação do posicionamento intra-abdominal, estabelece-se o
pneumoperitônio. Em seguida faz-se a inspeção da parede abdominal anterior em
busca dos vasos epigástricos inferiores. Estes vasos correm superior e
medialmente de um ponto lateral ao anel inguinal interno e são estruturas
retroperitoneais melhor visualizadas diretamente. A transiluminação da parede
abdominal é ineficaz para identificação destes vasos. Para laparoscopia com
três punções, os dois trocateres inferiores são colocados lateralmente aos
vasos epigástricos inferiores. As aderências nesta região devem ser seccionadas
antes da inserção dos trocateres acessórios. Para inserção segura desses
trocateres inferiores, pode-se utilizar o laparoscópio
para elevar a parede abdominal anterior adjacente ao local de inserção
selecionado. O trocater é colocado horizontalmente logo abaixo do laparoscópio e no
interior do pneumoperitônio.
Caso seja realizada a videolaparoscopia (nota do tradutor: a laparoscopia com
projeção da imagem em um monitor, que hoje é o procedimento padrão), um
quarto trocater geralmente é necessário. Para cirurgiões que realizam a laparoscopia
olhando diretamente através de um laparoscópio
cirúrgico, as três punções descritas acima são suficientes para a maioria das
cirurgias laparoscópicas avançadas (Figura 1). Um manipulador intrauterino é
necessário para a visualização de toda a pelve (Figura 2).
Fisiopatologia
das aparências visuais da endometriose:
O diagnóstico cirúrgico da endometriose depende muito da
percepção do cirurgião das múltiplas formas visuais possíveis que ocorrem com a
endometriose, assim como o que se constitui o peritônio normal. A avaliação junta
ao peritônio com a laparoscopia de quase-contato (Figura 3) pode ajudar a
identificar lesões sutis de endometriose. Os cirurgiões que estejam procurando
apenas por lesões hemorrágicas irão fazer um sub-diagnóstico na maioria das
pacientes, e deixarem de fazê-lo completamente em outras. A microscopia da
endometriose revela elementos glandulares e estromais vazios com poucos vasos
capilares (Figura 4). Portanto, a endometriose em si pode ser clara ou sem cor
(Figuras 5 e 6). Muitas das manifestações visuais da endometriose são na
verdade consequência dos efeitos locais da doença ao invés da própria doença em
si. Por exemplo, a hemorragia associada à endometriose não é uma manifestação
visual direta da doença, mas sim uma mera desestabilização dos vasos capilares
adjacentes à doença. A endometriose existe como glândulas e estroma. Glândulas
secretam enquanto vasos sanguíneos sangram. O sangue pode se acumular em local
longe da doença, levando a biópsias que parecem estranhamente negativas para
endometriose. Da mesma forma, fibrose e cicatrizes brancas (Figura 7) ou
amarelas são resultados de endometriose circunjacente supostamente secretando
alguma substância parácrina que resulta em estimulação de fibroblastos, levando
à doença “para dentro” ao invés de “para fora”.
Figura 6. As lesões
sutis de endometriose mostram cicatrizes branca-amareladas associadas à doença
peritoneal. Note que os capilares subjacentes estão escondidos pelo processo
reativo.
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Qualquer local no corpo onde a endometriose é encontrada
pode ter uma aparência que varia de inócua [1] (Figuras 5 e 6) à invasiva,
hemorrágica e inflamatória (Figura 8). A aparência visual das lesões pode mudar
progressivamente, com hemorragia e cicatrização cumulativas tornando-se mais
evidentes com o tempo [2]. Mesmo significantes nódulos obstrutivos do trato
gastrointestinal podem não apresentar qualquer descoloração, mostrando
principalmente nodulação branca fibrótica e consequente distorção da parede
intestinal (Figura 9). As variações no aspecto visual da endometriose dependem
em parte da quantidade de receptores hormonais presentes na lesão em cada área
pélvica no momento da concepção. Devido aos baixos e variáveis níveis de
receptores de estrogênio e progesterona da endometriose em comparação ao
endométrio nativo, a endometriose sangra da maneira não cíclica, imprevisível,
ou não sangra nada [3]. A identificação da endometriose sutil depende muito do conhecimento
sobre o que é o peritônio normal. A inspeção de perto do peritônio com a
laparoscopia de quase-contato é necessária para discernir peritônio normal de
anormal (Figura 10).
Figura 9.
Endometriose significante do cólon sigmoide. Note a distorção da parede
intestinal com raro pontilhado hemorrágico.
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Endometriose
microscópica:
A endometriose microscópica é um tema que tem recebido
mais atenção do que merece. Endometriose microscópica implica na existência de
uma doença que não pode ser vista e que está localizada em peritônio
visualmente normal, supostamente em 25% das pacientes [4]. Os critérios para o
peritônio normal foram estabelecidos e verificados. O conhecimento científico
básico deveria rechaçar a ideia de endometriose microscópica. Primeiro, o olho
humano nu tem a capacidade de ver detalhes tão pequenos como 100 μm, que é a
espessura de um fio de cabelo (Figura 11). Segundo, foi encontrado que
depósitos de endometriose não identificados (microscópicos) variam de 100 a 800
μm de diâmetro, com uma média de 300 μm para lesões não visualizadas [5].
Terceiro, a endometriose é uma doença do mesotélio, começando nas superfícies
com graus variados de invasão dependente das diferenças inatas da atividade
metabólica. Portanto, deveria ser possível identificarmos virtualmente toda endometriose se o observador
utilizar uma modesta magnificação para distinguir o peritônio normal do
anormal. Os critérios da aparência visual normal do peritônio foram
estabelecidos e validados [6, 7]. Se a magnificação for utilizada, torna-se
claro que, conforme diminui a distância entre o olho do observador e o
peritônio, a frequência de endometriose “microscópica” não vista chega a quase
zero [5, 6, 7, 8]. A endometriose microscópica costuma ser utilizada como uma
explicação não plausível para a dor que persiste após a cirurgia, como um
motivo para justificar o tratamento medicamentoso, ou como uma justificativa
para doença persistente após tratamento cirúrgico incompleto. Não há evidências
que pequenas lesões esporádicas de endometriose que podem não ser identificadas
na cirurgia possam se desenvolver em lesões mais significantemente invasivas
que causarão dor ou infertilidade futuramente. Enquanto não há questionamentos
de que a endometriose possa existir em formas extremamente sutis, a
endometriose microscópica não parece ser uma delas.
Nota do Tradutor: Nesta primeira parte do texto, o doutor Redwine discorre sobre as
diferentes aparências visuais da endometriose, e enfatiza a necessidade de que
utilizemos a laparoscopia “de quase-contato”, ou seja, que devemos aproximar o
laparoscópio bem junto ao peritônio pélvico para fazermos sua inspeção, sob
risco de não identificarmos todas as lesões.
Entretanto, mais importante
ainda que aproximar o laparoscópio, é entendermos (e acreditarmos) que
quaisquer alterações devem ser interpretadas como endometriose, e removidas. O
raciocínio é relativamente simples: teremos alguma chance de remover as lesões
de endometriose (especialmente as profundas) apenas (e apenas somente) se nosso
cérebro tiver sido treinado para identificar as lesões de endometriose. Lesões
negras, “em pólvora”, são facilmente identificadas e interpretadas como
endometriose. Entretanto, são a minoria. Demais lesões peritoneais, como
descritas pelo doutor Redwine, só serão identificadas pelos cérebros treinados
para tal. Lesões profundas só serão identificadas por cirurgiões capazes de
dissecar “a fundo” e então visualizarem as lesões. Esse é um grande desafio da
doença.
Nosso cérebro conseguirá
identificar qualquer fato ou objeto apenas se tivermos aprendido previamente o
que é aquele fato ou objeto. Por exemplo, eu não saberia dizer o que é um disco
voador, se eu não tivesse visto anteriormente um disco voador (ou pelo menos
uma imagem do que eu acredito ser um disco voador). É assim também com a
endometriose. Precisamos tê-la visto anteriormente, em suas diversas formas
visuais, para diagnosticá-la durante a cirurgia. Alguns cirurgiões terão visto
e acertarão o diagnóstico e tratamento com a excisão completa; outros terão
visto, mas dirão que as lesões não são endometriose, para não prolongar o tempo
cirúrgico; outros não terão visto a doença e reconhecerão que não viram; e
outros, por último, não terão visto a doença, mas acharão que a viram. É um
grande desafio.
Outro desafio é desmistificar o
conceito de endometriose “invisível” ou “microscópica”. Ainda que, ao operarmos
uma mulher jovem (talvez até os 35 anos de idade) ela não tenha desenvolvido
todas as lesões de endometriose de sua vida, é bem provável que consigamos
identificar pequenas lesões com a capacidade de nosso olho humano aliado à
magnificação da imagem proporcionada pela laparoscopia, mediante cuidadosa
inspeção. A endometriose é uma doença previsível, ocorre quase que
invariavelmente nos mesmos locais. É possível sim identificá-la com clareza e
exatidão, desde que nossos cérebros tenham sido treinados para tal. Se
desmistificarmos o conceito de endometriose invisível, assim como a famigerada
teoria da menstruação retrógrada, torna-se relativamente fácil entender o
mecanismo da doença.
Sobre o doutor Alysson Zanatta:
Graduado e com residência médica pela Universidade Estadual de Londrina, doutor Alysson Zanatta tem especializações em uroginecologia e cirurgia vaginal pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), cirurgia laparoscópica pelo Hospital Pérola Byington de São Paulo e doutorado pela Universidade de São Paulo, USP. Suas principais áreas de atuação são a pesquisa e o tratamento da endometriose, com ênfase na cirurgia de remoção máxima da doença. Seus interesses são voltados para iniciativas que promovem a conscientização da população sobre a doença, como forma de tratar a doença adequadamente. É diretor da Clínica Pelvi Uroginecologia e Cirurgia Ginecológica em Brasília, no Distrito Federal, onde atende mulheres com endometriose, e ex-professor-adjunto de Ginecologia da Universidade de Brasília (UnB). (Acesse o currículo lattes do doutor Alysson Zanatta).
Endometriose na face existe?
ResponderExcluirFiz meu procedimento dia 28 de setembro. Através deste post tive conhecimento da posição utilizada para execução do procedimento e entendi o motivo pelo qual tive tantas dores na região lombar e ciática no pós operatório. Mas minha laparoscopia virou uma laparotomia devido excesso de aderências que prejudicavam a segurança do procedimento.
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