Na terceira e última parte do texto "Uma revisão crítica sobre a teoria de Sampson a respeito da origem da endometriose" leia a parte 1 e a parte 2, o médico e cientista americano David Redwine continua sua análise acerca da teoria de Sampson. Você sabia que Sampson nunca comprovou com fotos o que diz sua teoria? Que ele nunca publicou uma fotografia microscópica dos focos de endometriose menstruando? Leia o texto e a nota do tradutor que diz que a teoria da menstruação retrógrada "leva milhões de mulheres a aceitarem seu “destino” (e até mesmo a se culparem) por terem endometriose". Beijo carinhoso! Caroline Salazar
Tradução: doutor Alysson Zanatta
Edição: Caroline Salazar
Uma revisão crítica sobre o desenvolvimento da teoria de Sampson a respeito da origem da endometriose - parte 3
Em 1932 [19], Sampson deve ter sentido as objeções à sua
teoria de menstruação retrógrada. Ele concordou (com relutância) que a
metaplasia peritoneal poderia causar algumas das lesões de endometriose,
especialmente quando não havia nenhuma endometriose ovariana para explicar a
disseminação no peritônio. Entretanto, como muitas das pacientes com
endometriose tinham tubas patentes, ele não desistia de uma possível
contribuição do refluxo menstrual como um irritante específico para o peritônio
que poderia resultar em metaplasia reativa do peritônio em endometriose. Resistindo
ainda mais fortemente para defender sua teoria, ele afirmou (sem evidência
direta) que detritos celulares irritativos (menstruação) ou talvez núcleos
celulares extruídos de células endometriais secretoras que escaparam das
porções fimbriais das tubas uterinas provocavam metaplasia irritativa do
peritônio em endometriose, da mesma forma que detritos celulares que escapavam
das trompas durante a gestação provocavam a reação decidual em locais similares
no peritônio pélvico. Era aparentemente
desconhecido para ele a reação decidual causada pela progesterona. Ele pensava era
importante algum tipo de resto celular ou nuclear, porque ele nunca havia
observado endometriose em uma mulher que tivera uma gestação tubária rota
anteriormente, pensando ele que a gestação tubária iria semear o peritônio apenas
com sangue ao invés de quaisquer restos celulares. A validade de seu pensamento
é questionável, pois com uma gestação tubária rota, os tecidos embrionário,
fetal e placentário poderiam teoricamente semear detritos celulares no
peritônio. Devido ao seu inabalável poder de livre associação, e sem evidências
diretas, ele propôs que o tecido Mülleriano epitelial poderia estimular o
tecido mesenquimal em estroma Mülleriano, mas porque então um tecido Mülleriano
epitelial não poderia estimular o tecido em estroma epitelial? Ele seguiu
adiante demonstrando em elegantes fotografias microscópicas que a endometriose
tubária poderia surgir sob o epitélio tubário normal (independente da
menstruação retrógrada), e afirmou que a inflamação e o reparo da trompa
resultavam em metaplasia para endometriose, similar ao processo pelo qual a
endossalpingiose pode afetar os cotos tubários [20]. Ele então sugeriu que
esses depósitos de nova endometriose se descamariam durante a menstruação
(nenhuma evidência de fotografia microscópica foi demonstrada) e se
implantariam na pelve causando endometriose ovariana ou peritoneal. Sampson
constantemente formulava questões científicas, e as respondia baseado em lógica
retórica. Fica claro que ele dependia de
uma constante repetição do que ele havia publicado previamente, reforçado por fotografias
microscópicas que ilustravam o seu pensamento apenas até certo ponto. Entretanto,
ele nunca apresentou fotografias microscópicas robustas de endometriose
menstrual, de aderência do tecido endometrial à superfície ovariana, ou de
invasão e proliferação secundárias.
Em um resumo de sua carreira [21], ele se concentrou na
endometriose peritoneal, afirmando que a endometriose ocorria por causa da
menstruação retrógrada e que os implantes peritoneais menstruariam e criariam
novos implantes, fazendo com que a doença se disseminasse, igual ao câncer de
ovário. Ele admitia que não havia nenhuma prova que o tecido endometrial dos
cistos ovarianos semearia e se implantaria no peritônio para se tornar
endometriose, mas ele sugeria que as evidências eram muito robustas. Em uma
defesa de sua teoria, ele afirmou que “se fragmentos da mucosa Mülleriana
carregados pelo sangue menstrual até a cavidade peritoneal estão sempre mortos,
a teoria da implantação... também está morta e deveria ser sepultada e
esquecida. Se alguns desses fragmentos estiverem ocasionalmente vivos, então a
teoria da implantação também está viva.”
As maiores qualidades de Sampson como pesquisador eram a
sua enorme curiosidade e o seu entusiasmo pelo estudo da endometriose, assim
como uma imaginação ativa que moldaram suas observações clínicas de sua teoria
fervorosamente defendida, ao invés do inverso. Suas publicações eram extensas,
em média com mais de 35 páginas, sendo a maior de 88 páginas. Seus trabalhos
eram abundante e elegantemente ilustrados com fotografias cirúrgicas, desenhos,
e fotografias microscópicas, todos bastante surpreendentes a qualquer leitor, o
que daria ao seu trabalho um ar de autoridade suprema de difícil
questionamento.
Muito do trabalho de Sampson não seria aprovado para
publicação nos dias de hoje.
Em resumo, as fraquezas de seus argumentos superavam
suas qualidades. Seus trabalhos incluíam inúmeras repetições dos mesmos
pensamentos, suportados por especulações bastante detalhadas e pelo frequente
uso de palavras como “talvez”, “provavelmente”, “possivelmente”, “poderia”,
etc. Seus pensamentos eram pouco alterados pela passagem do tempo ou por novas
descobertas, como as formas mais discretas da doença que poderiam trazer novas
perspectivas para a origem da doença. Ele tentava caracterizar as objeções ou
exceções à sua teoria como estranhezas incomuns que não teriam nenhum efeito
real sobre a veracidade de suas crenças, ao invés de tentar modificar sua
teoria para tentar explicar todos os tipos de observações. Parece que havia
poucos de seus colegas dispostos a desafiar suas fortes convicções, e isso
permitiu que seus pensamentos reinassem inquestionáveis por várias gerações de
ginecologistas. A sua experiência clínica com a endometriose parece ter-se
limitado a poucas centenas de pacientes, direcionadas à minoria de pacientes
com doença avançada. Essa inexperiência resultaria obrigatoriamente em uma
visão incompleta da doença que tornaria mais provável a formulação de conclusões
incorretas àquela época. Como ele poderia ter proposto a correta teoria de
origem da endometriose com todas essas limitações?
A sua forte convicção de que estava correto, combinada
com ilustrações e repetições escolares, serviram como álibi para o que estava
faltando: ele nunca publicou uma fotografia microscópica dos focos de
endometriose menstruando, e publicou apenas uma fotografia microscópica de uma
suposta adesão inicial [16, e figura 7], e nenhuma de proliferação secundária
ou invasão de células ou fragmentos teciduais endometriais. Como ele não
realizou cortes seriados dos raros exemplos de suposta adesão inicial à
superfícies peritoneal do que ele assumia ser endométrio refluído, nós não
sabemos se há evidência que tal tecido teria se originado no próprio peritônio
sem a necessidade de menstruação retrógrada. Ele nunca discutiu a origem da
metaplasia fibromuscular que circunda a doença invasiva profunda. Talvez ele
tenha pensado que conciliar este achado com a menstruação retrógrada
significaria postular que o miométrio também refluiria e se espalharia pela
menstruação retrógrada, ou que a teoria da menstruação retrógrada não explicava
a origem dos adenomas de implantação, situação na qual ele nunca teria proposto
a teoria inicialmente.
A
menstruação retrógrada como origem da endometriose requer que a endometriose
seja cirurgicamente incurável, progressivamente disseminada, uma doença de
autotransplante. Entretanto todas essas características foram desmentidas [22].
As altas prevalência e frequência de diagnóstico cirúrgico da endometriose
deveriam resultar em confirmação por fotografias microscópicas das suposições
de Sampson de adesão inicial do tecido refluído, assim como proliferação e a
invasão, porém os investigadores que procuraram por isso nunca as encontraram.
A adesão inicial e proliferação secundária permanecem como milagres sem
explicação.
...
menstruação retrógrada como origem da endometriose requer que a endometriose
seja cirurgicamente incurável, progressivamente disseminada, uma doença de
autotransplante. Entretanto todas essas características foram desmentidas. As
altas prevalência e frequência de diagnóstico cirúrgico da endometriose
deveriam resultar em confirmação por fotografias microscópicas das suposições
de Sampson de adesão inicial do tecido refluído, assim como proliferação e a
invasão, porém os investigadores que procuraram por isso nunca as encontraram.
A adesão inicial e proliferação secundária permanecem como milagres sem
explicação.
Apesar
dessas falhas fatais, alguns autores ainda se esforçam para suportar essa
teoria, a última sendo a modificação da teoria da circulação peritoneal de
Sampson [23]. Esse modelo inventivo tenta explicar a pequena elevação de acometimento
do ovário e do ligamento útero-sacro no lado esquerdo da pelve, comparado aos
seus pares no lado direito. Os defensores dessa modificação propõem que há uma
circulação natural em sentido horário (da maneira como vemos a paciente) do
líquido peritoneal, mas que a porção pélvica do cólon sigmoide desvia a
circulação em direção à linha média, e para longe da região pélvica. Essa área
“protegida” na pelve esquerda teoricamente permitiria que tecido endometrial
refluído pela trompa esquerda permanecesse mais tempo em contato com o
peritônio, facilitando portanto a adesão quando comparado ao lado direito da
pelve, onde o líquido peritoneal “lavaria” as células refluídas para fora da
pelve. Não dispondo de evidências próprias, os autores baseiam-se inteiramente
no trabalho publicado por Meyers em 1970 [24], no qual contraste radiológico
foi injetado na cavidade peritoneal de homens e mulheres com câncer peritoneal,
derrames, abscessos e aderências. A posição dos pacientes era modificada em uma
mesa móvel, e radiografias obtidas durante as mudanças de posições. Foi publicado um diagrama esquemático (figura
2), indicando que o contraste poderia viajar virtualmente para qualquer lugar
na cavidade abdominal, dependendo da posição da mesa. Além da objeção óbvia que
tal trabalho não é fisiológico e não se relaciona à questão da menstruação
retrógrada, há ainda uma preocupação mais séria. Para embasarem seu argumento,
os autores modificaram a figura publicada por Meyers, apagando ou adicionando
setas para embasarem a “evidência” para a circulação que eles propunham (figura
3). Devido a tais alterações, a figura original de Meyers também poderia
“provar” que existiria apenas uma circulação em sentido anti-horário (figura
4).
Conclusão:
Há
uma simbiose doentia entre a teoria de Sampson e tratamentos clínicos e
cirúrgicos ineficientes. A teoria de Sampson prediz falha de todas as
modalidades de tratamento, enquanto os tratamentos ineficazes é que causam essas
falhas. Os médicos não têm que culpar os tratamentos ineficazes pelas falhas
terapêuticas, porque “é a natureza da doença, ela sempre volta”. A teoria de
Sampson direcionou o pensamento sobre a doença por muito tempo, e as mulheres
têm sido fisicamente lesadas pela sua aceitação, já que repetidas cirurgias e
ciclos de tratamento médico são marcas infelizes do moderno tratamento da
doença. Os defensores dessa teoria têm falhado em abordar suas falhas fatais, e
agora estão criando “evidências” a partir do ar. Se a teoria de Sampson for
finalmente descartada, nós seremos livres para imaginarmos outra teoria de
origem, possivelmente mais correta, e que seria valiosa para ambos ciência e
pacientes.
... a
teoria de Sampson direcionou o pensamento sobre a doença por muito tempo, e as
mulheres têm sido fisicamente lesadas pela sua aceitação, já que repetidas
cirurgias e ciclos de tratamento médico são marcas infelizes do tratamento
moderno... se a teoria de Sampson for finalmente descartada, nós seremos livres
para imaginarmos outra teoria de origem, possivelmente mais correta, e que
seria valiosa para ambos ciência e pacientes.
Nota do Tradutor:
Há um ditado popular que diz que
“uma mentira contada várias vezes pode se tornar uma verdade”. Da mesma forma,
repete-se há um século que a endometriose é causada pela menstruação, o que
tornou-se uma “verdade”, sem muitos questionamentos.
Como ressaltado neste brilhante
artigo do Dr. Redwine, a teoria da menstruação retrógrada, proposta por Sampson
em 1921 para explicar a origem de endometriose, está contaminada por falhas e
falta da comprovação direta: a demonstração inequívoca de que o endométrio é
capaz de se implantar e invadir o peritônio, formando as lesões de
endometriose, especialmente profunda e ovariana.
Fato ainda mais surpreendente
não é a teoria em si, mas a sua aceitação um séculos após, apesar das modernas
ferramentas que dispomos para pesquisa. Essa aceitação impede avanços no
tratamento da endometriose, justificativa antecipadamente todas as falhas de
tratamento, e leva milhões de mulheres a aceitarem seu “destino” (e até mesmo a
se culparem) por terem endometriose.
O desafio é enorme, mas, com pesquisas
científicas, o poder da comunicação, e troca de experiências, poderemos mudar o
entendimento vigente sobre a endometriose, e assim o seu cenário. Vamos em
frente!
Sobre o doutor Alysson Zanatta:
Graduado e com residência médica pela Universidade Estadual de Londrina, doutor Alysson Zanatta tem especializações em uroginecologia e cirurgia vaginal pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), cirurgia laparoscópica pelo Hospital Pérola Byington de São Paulo e doutorado pela Universidade de São Paulo, USP. Suas principais áreas de atuação são a pesquisa e o tratamento da endometriose, com ênfase na cirurgia de remoção máxima da doença. Seus interesses são voltados para iniciativas que promovem a conscientização da população sobre a doença, como forma de tratar a doença adequadamente. É diretor da Clínica Pelvi Uroginecologia e Cirurgia Ginecológica em Brasília, no Distrito Federal, onde atende mulheres com endometriose, e Professor-adjunto de Ginecologia da Universidade de Brasília (UnB). (Acesse o currículo lattes do doutor Alysson Zanatta).
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